sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Reflexões sobre o riso, o sorriso e a dor*

Após tanta massificação e influência de ideias herdadas do século passado e em atividade nos tempos atuais, não toleramos mais a velha postura chamada autenticidade. Talvez essa “qualidade” seja a maior mentira e ilusão do ser humano nos últimos tempos. Poderíamos dizer, ironicamente, que a autenticidade congela o sentimento, as reações espontâneas e tenta eleger regras para posicionamentos que justifiquem as atitudes - ou a falta delas. Alguns dizem que é melhor rir daquilo que fizemos e nos arrependemos. Ou: “é melhor rir do que chorar – viver a vida com leveza”. Sempre penso no motivo do riso em nossa vida. O choro seria o lado avesso do riso? Não sei. Às vezes acho os dois tão semelhantes... Um deles regado por lágrimas.

Historicamente há tanta polêmica sobre o riso, que isso forçou o sorriso a separar-se da graça. Antes, uma namorada em sinal de aceitação, após um flerte, sorria - ria sem ruído -. O bebê sorri. Demonstra compreensão dos desejos alheios de contentamento. A menina esboça um sorriso ao perceber os primeiros passos do amor. Isso a alegra e valoriza. A ironia, por outro lado, se manifesta no sorriso de desprezo ou decepção... Talvez até de surpresa... O que a faz se confundir.

O criminoso sorri com amargura nos olhos, diante de sua condenação. O perdedor, triste consigo mesmo, ri de sua fraqueza e derrota. Os pais esboçam um sorriso emoldurado pelo carinho diante das primeiras palavras do filho. O filho ri da falta de jeito dos pais frente à modernidade. 

Quase sempre, os homens riem muito e as mulheres sorriem mais. O sorriso pode ser portador do amor ou da dor, da leveza ou da preocupação. Lembro-me que alguém disse que “Todas as mulheres guardam algo de indestrutível e o trabalho dos homens é evitar que elas o percebam”. Quase todos riem da tentativa de evitar a percepção dessa qualidade que cria, nos homens, dúvidas e fraquezas traduzidas por machismo, complexo de superioridade, tentativas de subjugar ou menosprezar... O conflito e insegurança que isso traz, cria feridas e deixa sequelas que jamais nos abandonam. Samura Koichi diz: “Quem disse que o tempo cura todas as feridas? Seria melhor dizer que o tempo cura tudo, exceto as feridas”. Outro me diz: “Mas a história só é amarga para os que a querem doce...”. Outro ainda: “... um cão esperava seu dono todos os dias na estação. Um dia o dono morreu e o cão não soube. Continuou a esperá-lo a vida toda”. Meu coração, diante da tentativa de explicar o mundo por meio de palavras... Sorri. Com minhas limitações, eu somente consigo rir. 

Disso eu posso sorrir: após preparar, cuidadosamente um jantar (sou um gourmet bem razoável), meu filho, olhando-me com um sorriso, também cuidadoso, no rosto, me disse: Pai... Está ruim demais. Eu, claro, respeitei e pedi que ele fosse sempre sincero. Por ironia do destino, ele disse: Mas só a carne! 

Infelizmente, o prato principal era a carne... Sorri. 

Viajando recentemente, parei em um posto à beira da estrada. Pedi um pastel de carne ao atendente e, cansado e com fome, após a primeira mordida, percebi que não havia carne. O atendente, olhando-me fixamente, ao perceber meu sentimento de mau humor, com um sorriso amarelo estampado no rosto, aproximou-se e disse – Não tem carne? Fica tranquilo, chefe. Na segunda mordida “É batata!!”. Esperemos. Sorria muito e, se possível, evite chorar... 

*O texto foi baseado nos filmes “Sans soleil – La Jetée”, de Chris Marker. Recomendo.

Um comentário:

  1. Parabéns Geraldo, belo texto, ... é melhor ter o aviso que na segunda mordida tem batata, do que apenas vento...rssss

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