Havia poucos bairros. Talvez dois. As três ruas principais
eram popularmente chamadas de “do meio, de baixo e de cima”. A do meio era calçada
com pedras retangulares, com um formato abaulado e grandes paralelepípedos
delineando os passeios. À noite, era palco para as brincadeiras de queimada e
esconde-esconde, entre outras. Interrompidas somente pelo chamado dos pais, que
de dentro das casas lembravam às crianças a hora do banho e o “já para a cama”.
Os amigos eram vizinhos, colegas de escola e participavam do dia a dia da
cidade onde não havia, aos olhos daquelas crianças, diferenças sociais que as
sobrepusessem aos outros.
Eram iguais e, nas brincadeiras, alternavam o sentimento de
vencedores e perdedores. Ali surgiam os primeiros namoricos, as brigas e
reconciliações, disputas... Tudo na mais perfeita ordem desordenada do ritmo de
formação e interação de crianças livres. Envolvidas por pais bem intencionados,
dentro de uma sociedade pacata e justa. A instituição família se expandia aos
adultos vizinhos, pais de outras crianças que, ao seu modo, contribuíam para a
educação de todos.
O centro de todos os acontecimentos era a velha igreja,
solitária no alto de um morro, com seu sino que assustava em dias comuns,
quando anunciavam a morte de algum conterrâneo. Havia também a banda de música.
Essa era regida magistralmente por Antonio Caetano de Freitas. Conhecido como
“Antônio da Alzira”, professor de quase todos os músicos daquela época, famoso
por sua competência e rigidez no ensino.
Assim se desenrolava o cotidiano dos moradores e os sonhos
seguiam tranquilos rumo a sabe-se lá o que.
Com a evolução industrial e os lampejos de um final de
ditadura, começaram a surgir novas perspectivas de crescimento e
desenvolvimento em todo o país. Essa cidade não ficaria impune. Sempre
talentosa para as artes, descobriu também sua aptidão para os negócios que a
conduziriam ao reconhecimento nacional, por meio da indústria calçadista.
Vivendo em uma casa com quintal muito grande, com árvores
frutíferas, nativas e um jardim à frente, habitada por crianças e bichos de
estimação que dominavam o território, víamos o aumento de automóveis nas ruas,
a pressa das pessoas ao amanhecer, atendendo aos sons das sirenes das fábricas e
o aparecimento de novos personagens na vida social da cidade. Eram os tempos
modernos que mudavam nossos natais, nossas semanas santas, nossos costumes e
desenvolviam, aos poucos, em todos os moradores, o conceito e diferenciação de classes
sociais.
Vidros de automóveis já delimitavam as diferenças e já se
percebia algum distanciamento entre as pessoas. Reuniões em esquinas regadas a
conversas despretensiosas e música (batuque, como era chamado esse encontro
musical), eram transferidas para clubes. Alguns pequenos grupos já se dirigiam
aos guetos que surgiam na cidade. A busca pela profissionalização aumentava e o
grau de competitividade levava todos à dedicação integral aos negócios. O
encontro entre as pessoas, mesmo as mais próximas, tornava-se algo difícil. Quase
impossível.
Novas construções davam à cidade de três ruas o ar de
metrópole. Novos bairros eram construídos para acolher emigrantes de todo o
país. Aquelas três ruas, sufocadas pela multidão, e os poucos bairros
existentes naquela época, guardariam eternamente, no sonho daqueles que viveram
livres e em harmonia, o sentimento de igualdade e de que a vida bem vivida não
se pensa. Se vive.
Esporadicamente volto às suas ruas. Gosto de andar na noite,
na madrugada... Quando as lembranças povoam o deserto que emana da nostalgia. Ouço
falar da violência, da política e, com entusiasmo, da arte. Prova de que a arte
continua prevalecendo e exigindo seu espaço, embora, muitas vezes, enfrentando
o alheamento sócio cultural, contaminado pelas chagas desses tempos incultos. Mas
rapidamente o bom senso me lembra que isso ocorre no mundo todo.
Uma coisa ainda me aquece a alma inundando-a de esperança: vejo
e reconheço algumas pessoas, em suas portas, conversando, vivendo... Alguns já
idosos, mas fiéis à curiosidade pelo movimento das ruas. Outros, em eterna
contemplação, como se a vida passasse diante de seus olhos. Como se olhassem o
mundo moderno e somente enxergassem os velhos tempos. Muitos já se foram.
Mas eu os vejo e revejo nas histórias, anedotas e locais que
frequentavam. O melhor de tudo: alguns
que conheci, criança ainda, agora têm seus filhos e, em alguns casos, netos.
É o mover da vida. Sonhos se alternando com momentos de
realidade e nos conduzindo à busca de melhores dias.
Tudo isso me reporta àquele tempo em que eu imaginava morar
em um grande casarão que ocupava um terreno imenso na rua “do meio”. Era meu
olhar de criança.
Mais tarde percebi que a casa não era tão grande assim e que
o terreno também era pequeno. Não sei se eu cresci me imaginando maior que as
coisas que me rodeavam, ou se busquei a pequenez, contaminando meus olhos ao
vislumbrar o mundo, longe daquele quintal. Impedindo que eu transitasse pelas
pequenas e belas ruas da vida.
Tudo isso sou eu. E o que tenho no coração e na vida está
relacionado a esta cidade:
Nova Serrana (Minas Gerais - Brasil).
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