domingo, 16 de fevereiro de 2020

Música - Uma trajetória latino-americana

Brasil e Uruguai

A miscigenação de raças, com seus variados elementos culturais e artísticos, proveniente da Europa e da África, aliados à cultura indígena, são fatores muito importantes para a observação e estudo da cultura artística, principalmente musical, na América Latina. Cada país com sua particularidade, tem, em sua música regional, uma identidade própria que dá suporte para os avanços de novos expoentes. Que surgem com propostas avançadas e ideias inovadoras, tendo como base a essência de sua cultura, fruto de uma evolução natural.

Mesmo com todos os avanços dos últimos anos, no campo da tecnologia, quando se esperava um entendimento mundial e melhoria de vida para os cidadãos do mundo, somos forçados a admitir que muito se ganhou com o encurtamento das distâncias, pela facilidade de acesso e disponibilidade de informações, mas que também, em alguns aspectos, muito se perdeu.

Entre o Brasil e o Uruguai, por exemplo, houve um período de grande identificação, talvez nos primórdios e evolução paralela do nacionalismo musical, que contribuiu para certa interação artística entre compositores e instrumentistas. Principalmente aqueles que se dedicaram à composição, didática, exposição e execução do violão, e puderam participar de sua ascensão enquanto instrumento de concerto.

Nomes como Eduardo Fabini (1882 - 1950), que compôs “Tristes”, obra para piano e para violão, Alfonso Broqua (1876 – 1946) com a conhecida e difundida obra “Evocaciones Criollas”figuram entre os principais representantes do nacionalismo uruguaio e acenam para o que viria a ser considerado parte do repertório violonístico, expressivo para a evolução da literatura e intercâmbio do instrumento, entre os dois países. 

No Brasil, nesse período, precursores do nacionalismo como Brasílio Itiberê (1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892) e Alberto Nepomuceno (1864-1920), entre outros, preparam o caminho para o movimento modernista do início do século XX,  cujo lema era a liberdade de expressão, contra o academismo e o tradicionalismo, enfatizando o nacionalismo e valorizando essa corrente estética. Desse movimento surgiram importantes páginas da obra de autores brasileiros, compostas originalmente para o violão. Heitor Villa Lobos viria a compor uma das mais expressivas e importantes obras, passando a ser uma referência para o repertório violonístico mundial. 

Enquanto se desenvolvia a escola do violão brasileiro, de linguagem chamada popular, representada por importantes instrumentistas compositores, entre eles Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, (1915 – 1955) e João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco (1883 – 1947), com estilos antagônicos, o nacionalismo na música erudita, preparava o caminho do que viria a se tornar a música moderna com linguagem característica, respeitando a cultura de cada um desses países. Mesmo que, até certo ponto, sofrendo influências europeias. 

Entre 1937 e 1946, o violonista espanhol Andrés Segóvia se transfere para o Uruguai, em razão da guerra civil espanhola. Fixando sua residência em Montevideo, ele realiza muitos recitais pela América Latina, promovendo e dando visibilidade ao violão, em importantes salas e teatros voltados para a música de concerto. Durante sua permanência no Uruguai, Segóvia conhece um jovem músico chamado Abel Carlevaro, que nos anos seguintes seria seu discípulo. 

Nesse momento de grande efervescência musical, Guido Santórsola (1904 – 1994), que já frequentava o Uruguai desde 1931 como viola solista e, posteriormente, como regente da Orquestra Sinfônica do Sodre (OSSODRE), mantinha um forte elo entre a música dos dois países, presentes em suas composições. Nascido na Itália, ele viveu um longo período no Brasil e, a partir de 1940, transferiu-se para o Uruguai. Em sua obra podemos perceber momentos distintos, passando pela influência dos ritmos brasileiros e, em seguida, do nacionalismo musical Uruguaio. Radicado nesse país, ele viveria, ainda, um terceiro momento de sua linguagem de composição, onde prevalece o contraponto no desenvolvimento de obras como o Concerto para dois violões e Orquestra, por exemplo. Esse concerto foi, posteriormente, executado e gravado pelo Duo Abreu, formado pelos irmãos brasileiros, Sérgio e Eduardo Abreu. Gravação antológica de um duo reconhecido em todo o mundo. 

Nesse cenário, seguia o jovem compositor e concertista uruguaio, Abel Carlevaro (1916 - 2001). Nascido em Montevideo, nos anos de 1940 ele já fazia parte do ambiente musical latino-americano, conquistando a admiração dos mais importantes compositores que trafegavam na cena musical daquele tempo.  Importante pedagogo, Carlevaro desenvolveu um novo sistema para o estudo da técnica do violão e lecionou em importantes centros de ensino desse instrumento, tornando-se referência em todo o mundo. Tornaram-se célebres suas classes nos Seminários Internacionais de Violão de Porto Alegre, promovidos pelo Liceu Musical Palestrina. Por esses seminários passaram vários violonistas que muito contribuíram para a consolidação do instrumento no Brasil. Entre eles, o mineiro José Lucena, responsável pela criação do primeiro curso de violão em uma universidade pública federal.

Hoje podemos admitir que Abel Carlevaro foi presença marcante, tornando-se o maior incentivador do violão e criador de uma das escolas técnicas mais exploradas e difundidas no século passado.

Antes, porém, em 1931, migrara para o Brasil, seu compatriota Isaias Sávio (1900 – 1977). Em São Paulo, o violonista e compositor, criaria uma das mais importantes escolas da música erudita para violão. Inúmeros violonistas brasileiros, entre eles Antônio Carlos Barbosa Lima,  Antonio Pecci Filho, o Toquinho, (autor de várias canções populares em parceria com Vinícius de Moraes), e Marco Pereira, passaram por suas classes de violão, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Também foi seu aluno o importante pedagogo do violão erudito no Brasil, Henrique Pinto. Isaías Sávio é considerado um dos mais importantes promotores do estudo do violão no Brasil, com inúmeras edições em livros técnicos de sua autoria. Em 1963 naturalizou-se brasileiro.

Hoje, a escola brasileira do violão se guia por bases sólidas, tanto nas questões técnicas e musicais, como na busca de uma identidade plural, onde convivam, em harmonia, diversos estilos e gêneros. Nomes como Joaquim Francisco dos Santos, conhecido como Quincas Laranjeiras e Oswaldo Soares, entre outros, serão sempre lembrados como os responsáveis pela ascensão e aceitação do violão na alta sociedade, até então preconceituosa quanto à utilização do instrumento em concertos. Atualmente vivemos um “Violão Brasileiro” em constante ebulição. Cada região com suas particularidades e riquezas nativas, envolvidas por uma linguagem e roupagem pessoal que determina a marca do instrumentista.

A vertente popular, muito forte, iniciada por Garoto, Laurindo de Almeida, Luis Bonfá, João Pernambuco e Américo Jacomino, entre outros, teve sua continuidade com Baden Powell (1937 - 2000), e a magia do violão seresteiro de Dilermando Reis. Todos eles, por sua habilidade técnica e propostas inovadoras, responsáveis pelo feliz e necessário encontro com a didática de pedagogos uruguaios e brasileiros, dedicados e voltados para o estudo da técnica do violão. 

No presente, quando lançamos nosso olhar para o passado, de onde se percebe a história, somos impelidos a crer que a origem de tudo se dá na valorização do nacionalismo e na busca de identidade própria. Com abertura para o conhecimento alheio, para as propostas e investidas do mundo... Mas também para o confronto e experiência in loco e a pesquisa, onde a arte passa por filtros estéticos e culturais, embasada pelo que vivemos no dia a dia, absorvendo os elementos que utilizaremos para expressar nossas convicções artísticas. 

Podemos perceber os ecos e ventos dos precursores que nos levaram ao preparo técnico necessário para a execução de nossas ideias musicais. O mundo não tem mais fronteiras. A música ecoa em todos os cantos para aqueles que querem ouvi-la, experimenta-la, vive-la... 
E conhecê-la in loco, embora os encontros presenciais e a busca pelos concertos e espetáculos, tenham sido transferidos para o ambiente virtual. Os tempos nos indicarão os novos caminhos... 

Geraldo Vianna é compositor, violonista, arranjador e produtor musical.