sexta-feira, 5 de maio de 2017

Sobre amigos e quintais

O limite territorial era pequeno. Embora fosse de um quarteirão a outro, podia-se avistar com facilidade o eventual trânsito de automóveis na rua de baixo, quando se escalava um pequeno muro que separava o jardim, da chamada rua do meio.

Existiam apenas três ruas, conhecidas como a de cima, a do meio e a de baixo. Meu universo se restringia àquele quintal oculto por uma casa velha situada na rua do meio, que tinha à sua direita lindas flores que cresciam a esmo num jardim forjado pelas mãos da natureza sem nenhuma interferência humana. Ali, pelas mãos do criador, segundo critérios naturais, nasciam e morriam flores do campo, marias-sem-vergonha, rosas, margaridas, antúrios e um desavisado canteiro de cebolinha verde que brotava e, num curto espaço de tempo, sucumbia à força de imensas samambaias e ervas daninhas.

Naquele tempo, eu, aventureiro, desbravava uma grande floresta com seus perigos, levando no peito aberto um sentimento talvez experimentado apenas pelos primeiros bandeirantes que cruzaram nossas terras primitivas. Às vezes improvisava abrigos cobertos com folhas de bananeira e esconderijos sob grandes pés de mamona protegidos por imensas mangueiras. Ali eu tinha, além do abrigo, a munição necessária para combater possíveis invasores, fornecida pela mamoneira.  Tudo ali, naquele território que ia de uma rua à outra.

Quando ao final da tarde, cansado, eu voltava para o aconchego de uma casa tranqüila, aquecida e com seu piso espelhado, passava ao lado de uma porta que levava aos porões escuros e misteriosos que tantas vezes me assombraram. Entre uma breve olhadela e um arrepio na espinha, correndo escada acima, alcançava a entrada da cozinha, de onde vinha um cheiro forte e agradável de tempero, exalado pela carne guardada na gordura. Hipnotizado, corria para a mesa e, a contragosto, atendia à exigência de minha mãe, dirigindo-me à pia para lavar as mãos. Num piscar de olhos, já a postos, deliciava-me com aquela carne gostosa que cuidadosamente eu desfiava. Nestes momentos era tomado por um estado de amnésia, que me fazia esquecer do provedor deste alimento, com o qual eu tanto conversara e por quem lamentara a perda.

À noite, após o banho batizado por minha mãe como “banho de gato”, sonolento, ouvia as histórias lidas por meu pai, das quais nunca conheci o final. Meus olhos pesados se impunham como carga insuportável para minhas pálpebras que, mesmo relutando, cediam entregues à exaustão. Quando finalmente conseguia reerguê-las, já era dia. Lá fora um mundo novo, festejado por pardais e sanhaços me convidava para grandes aventuras na selva. Com a promessa de lutar pelo bem da humanidade tal qual um paladino, e fazer-me merecedor do amor daquela que habitava meus sonhos, com apenas um salto, descia a pequena escada da cozinha e, despreocupadamente, olhava para a entrada do porão. Com toda a valentia de super-herói, com um pontapé, escancarava aquela velha porta e, sorrindo, partia para mais uma aventura.

À minha espera já estavam meus amigos de brincadeiras. Naquele tempo todos nós tínhamos apelido. Havia o Bob, a Pink, o Zulu e a Gabriela, a única a quem chamávamos pelo nome. Não conseguíamos encontrar um apelido que se adequasse à sua delicadeza e brandura. Eu era, às vezes, o Macarrão, por ser muito magro e outras, o Coalhada, por ter a pele muito clara. Mas somente permitia ser tratado assim naquele pequeno círculo, onde me sentia à vontade com meus amigos.

Bob era tranqüilo e solidário. Porém, após planejarmos nossas brincadeiras, participava ativamente. Parecia incansável. Às vezes, mesmo depois de já termos dado cabo dos bandidos, continuava a correr e nos atacar, querendo mais luta. Várias vezes fugi dele, zangado por sua insistência em continuar brincando. Jurava não aceitá-lo mais em nossa turma. Mas quando, no dia seguinte, ele chegava cabisbaixo como quem implora pelo perdão, eu o readmitia. Não sem antes impor condições.

Pink era a menor de todos. Tinha lindos olhos azuis e um andar suave e cambaleante. Parecia frágil, o que fazia com que tivéssemos muito cuidado com ela nas brincadeiras. Não participava das lutas e guerras de mamona. Era protegida por todos, o que a deixava em posição privilegiada.

Zulu era sempre o bandido. Chegara não sei de onde e preenchera uma lacuna importante em nossas brincadeiras. Pequeno e gordo, tinha um andar engraçado. Seus movimentos lentos facilitavam nossas investidas e vitórias. Apesar de ser sempre o perdedor, nunca reclamava ou recusava participar de uma aventura. Às vezes nos jogávamos todos sobre ele numa grande algazarra. Ele, quase sem ar, se reerguia e lançava-se sobre nós. Tornou-se importante sua presença em nosso dia-a-dia.

Gabriela era a mais esperada todos os dias. Sempre muito limpa, com um olhar suave e uma quietude que nos chamava a atenção. Às vezes trazia um laço vermelho  do lado direito da cabeça e quando nos observava, acariciava levemente o queixo. Juntamente com Pink, participava quase sempre como espectadora.

Lembro-me que certa vez planejei invadir uma tribo e tomar posse de seus pertences e território. Bem cedo, convocando a todos, expliquei qual seria o plano. Pink, por ser a menor e mais lenta, atrairia toda a tribo para uma trilha preparada por nós, enquanto Bob e Zulu os despistariam. Gabriela seria poupada. Poderia assistir a tudo para depois nos contar com detalhes toda a batalha. De acordo com o combinado, o inimigo seria levado para as proximidades de nosso esconderijo. Zulu deixar-se-ia capturar e Bob fugiria como se temesse ser pego. Na fuga ele daria uma volta em torno de nossos adversários, surpreendendo-os pela retaguarda. Eu surgiria pela frente, e os atingiria com uma grande saraivada de mamonas.

Tudo planejado, repassamos o plano e nos preparamos para o ataque. Enquanto enchia os bolsos e mãos de mamonas, ouvia gritos e barulho de correria pelo mato. Já preparado, atrás de uma moita num ponto estrategicamente escolhido, aguardava o momento para atirar-me contra todos e, num golpe de misericórdia, vencer e ser aclamado herói e chefe de uma nova tribo.
Em instantes vi Zulu ser agarrado pelos inimigos enquanto Bob corria velozmente em ziguezague, evitando ser alcançado. Já rendido, Zulu tentava em vão se livrar dos golpes desferidos por peles vermelhas furiosos. O número de atacantes era bem maior que o esperado. Era uma tribo de guerreiros maiores. Lançaram-se sobre mim e com pontapés me levaram ao chão. Bob tentou ainda me salvar, mas foi atingido por um soco nas costas. Dominado por um grande ódio, lancei-me sobre o maior deles, que me pareceu ser o chefe. Reagindo e puxando-me pelos cabelos, ele me empurrou sobre algumas toras de madeira apodrecida. Observei que minhas canelas sangravam. Apanhei algumas pedras e atirei-me sobre ele com raiva.

Nesse instante senti minhas orelhas ardendo e assustado voltei-me para trás. Meu pai, aos gritos, me arrastava fazendo-me erguer os pés para acompanhá-lo. Enquanto era conduzido por ele ouvindo fortes reprimendas pude ainda, humilhado, olhar para os inimigos que comemoravam sua vitória e me ironizavam. Diante de tamanho exército meus amigos nada puderam fazer. Lançaram-se em alta velocidade para o interior da selva, cuidando de não deixarem pistas.

Triste, derrotado e com ódio de meu pai, fui ainda submetido a um sermão naquela noite. Mais calmo, ele disse que já era tempo de eu crescer. Que deveria cuidar mais dos estudos, pois não era mais uma criança. Olhando-o fixamente, pensava nos meus amigos que lutaram comigo até o fim. Tentaria encontrá-los no dia seguinte. Enquanto imaginava como seria  minha vingança, fui subitamente interrompido por sua voz forte e elevada. Após uma breve pausa, olhou-me e lentamente falou que a partir do dia seguinte eu teria que trabalhar. Que só poderia me ausentar de casa para ir à escola. Que não permitiria mais minhas idas ao quintal para brincar. Que eu só criava confusões.

Meu mundo desmoronou. Naquela noite tive pesadelos e sonhei que era feito prisioneiro por um grande exército que planejava queimar-me vivo. No dia seguinte acordei com febre. Minha mãe, após me examinar, disse que seria melhor eu continuar na cama. Trouxe-me chá e cuidou para que eu não colocasse os pés no chão. Sentia dores no corpo todo e me lembrava do dia anterior como o pior dia de minha vida. À noite meu pai apareceu e disse que nada mudara. Tão logo eu estivesse melhor iria trabalhar ao seu lado. Que já era adulto. Não podia passar o dia todo envolvido em brincadeiras, procurando encrencas.
Minha cabeça estava confusa. Queria naquele momento estar entre meus amigos explorando aquela selva cheia de segredos onde eu podia livremente criar minha história, construir minhas cavernas e esconderijos.

No dia seguinte, muito cedo, como não havia melhorado, levantei-me e, após tomar o café da manhã, com todo cuidado e silêncio do mundo, pé-ante-pé, tentei descer as escadas da cozinha. Surpreendido por um grito de meu pai, retornei à cama. Dormi o dia todo.
Quando o sol já se tornara pálido, percebendo um grande silêncio em minha casa, levantei-me. Com toda a cautela do mundo abri a porta da cozinha e, quase sem respirar, desci os degraus que me levariam ao quintal já escuro àquela hora. Ao passar pela porta do porão senti-me atraído por alguma coisa que insistentemente chamava-me a atenção. Sentia medo e tentava, em vão, recuar. Fui tomado por uma coragem súbita e, respirando fundo, com o ombro abri violentamente aquele túnel que me levava à escuridão. Pude ver uma revoada de morcegos que se preparavam para se aventurarem noite adentro. Aos poucos meus olhos foram se acostumando à escuridão. Vaguei por alguns instantes sem destino sentindo todo meu corpo tremer. Aos poucos percebi uma luz que brilhava longe e que me fazia sentir alguma segurança.

Caminhei em sua direção por longas noites. Talvez meses, talvez anos. Quando, depois de muito tempo, consegui me aproximar daquele brilho, percebi que se tratava de uma pequena janela. Como não podia transpô-la, sentei-me e comecei a admirar todas as maravilhas do outro lado.
Vi uma rua sendo asfaltada e tendo seu movimento alterado por um grande número de automóveis. À medida que os anos passavam pude perceber um lindo jardim sendo destruído e em seu lugar um grande prédio ser levantado.  Já não havia tribos que me ameaçassem. Contidos, todos os inimigos me evitavam. Temiam lutar comigo ou não me percebiam através daquela pequena janela. Também não havia mais super heróis. Tudo estava mudado. Sabendo que naquele lugar eu estaria seguro para sempre, permaneci observando o mundo como se olhasse a vida através de uma vidraça. Nada mais me atingia, nada me fazia sofrer. Às vezes somente uma saudade me afligia. Pensava em meus amigos. Onde andariam?

Certa vez, ouvindo os transeuntes que passavam por minha janela, soube que Zulu, preso em um pequeno canil, ficara tão furioso que morrera tentando arrebentar uma fortaleza cercada por telas de arame.
Pink, após aquela batalha, experimentara a vida na rua lutando pelo alimento de cada dia. Tivera alguns filhotes e num dia como qualquer outro, fora atropelada por um automóvel e morrera.

Bob, capturado pelos inimigos, fora levado a uma fazenda. Imaginando que a brincadeira continuava, morreu ao perseguir uma boiada no pasto. Atingido por um coice, não resistiu.

Gabriela tivera uma ninhada de lindos coelhinhos. Todos delicados, brancos e suaves como a mãe.

Eu, enquanto pensava em meus amigos, olhando da escuridão em que me encontrava, para a luz que eu percebia lá fora, elaborava um plano que me libertasse daquele presídio e me conduzisse àquele quintal onde cresciam mamoneiras, mangueiras e outras plantas. Ali, embaladas pelo canto de pardais, sanhaços, gaturamos e um sem número de outros pássaros, todos cumpriam harmoniosamente o ofício e arte de viver.  Às vezes pensava em retornar pelo túnel escuro e, numa linda manhã de primavera, abrir aquela porta que me conduzira à solidão. Mas tinha medo. Lá fora já não se falava em aventuras. As pessoas já não tratavam como semelhantes a natureza e os animais. Iludidos, todos se portavam como superiores.

Dedico esta pequena história ao Otto, que me mostrou como viver intensamente com alegria até o momento da morte.