sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Insanidade

Próximo ao dia do compositor, comecei a formular e ponderar sobre o sentido da cultura em nossa vida. De forma ampla…

Preguiçoso e enfastiado que ando, com tanto lixo invadindo nossa casa e nossa vida, revisei o quadro cultural brasileiro. Que tristeza. Museus incendiados e condenados ao esquecimento, classe artística desprezada, setores culturais conduzidos sem criatividade por políticos de carreira, inabilitados, sentados à mesa de decisões de secretarias... Tudo isso cedendo lugar, na mentalidade do povo, por meio da mídia, a golpes de faca e bate bocas de pseudos conhecedores da problemática da vida. Do respeito…

Ironicamente, sorri e imaginei: como consegui dedicar toda minha vida ao estudo da música, composição, violão, ler livros, estudar cinema e canalizar tudo isso para o relacionamento com as pessoas e o entendimento da natureza humana?... Que loucura.

Aprofundar em temas como esse, dá muito trabalho e, quase sempre, nos leva ao conceito de que alguns questionamentos são loucura. Não têm resposta ou explicação. A verdade é que nossa raça tem muita facilidade para a adaptação. Nos acostumamos facilmente com a mediocridade e temos uma mente carente de soberania. A opinião ou o “espírito”, alheios à razão. Exceto quando atendendo às nossas necessidades e interesses próprios.

Modo insano de viver…

Assistindo aos políticos e ouvindo debates “engessados”, aguardo, ansioso, o momento do tema sorteado, com a palavra “Cultura”… Não tem?! Mas disseram que a base da civilização é a cultura! Não. Não tem mesmo. Ou não vi? Há outros temas mais importantes atualmente. É… O objetivo é outro. Argumentos que suplantem verdades ou inverdades adversárias.

A mãe, muito aflita e envergonhada, me chama e conta a realidade de seus dias. O marido, atropelado, em casa, sem emprego. Ela, desempregada. Ao seu lado o filho, um menino bonito, bem vestido e transparecendo desejo de brincar. Aproveitar seus dez anos. Ela diz que ele tem fome… Enquanto ela fala eu o observo. Por detrás de meus óculos escuros me permito reações que em situações normais eu travaria. Os olhos, às vezes, cedem à força da “água salgada” que as ondas do sentimento nos lança. A voz embarga. Retiro minha carteira e dou-lhe algum dinheiro.

Já me afastando, uma voz me diz que há alimento em sua merendeira. Voltamos. A cena é de uma criança entregando à outra algumas torradas e se despedindo. Acabara de pegar meu filho na escola.

Vida insana…

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Primeiro baile

Quis dizer-lhe algo sobre minha fragilidade. Sobre não saber para onde o mundo caminha. Sobre meus medos e inseguranças. Não consegui… O mundo é dirigido por nós mesmos em cadeias desordenadas, em direções variadas. Cada um buscando o que quer e dirigindo o andar dos dias como deseja.

Na madrugada, quando quase todos dormem, almas se redimem de suas dúvidas e pecados. A manhã é ansiosa. O dia tem que nascer.

Ele me olha e diz que sua vida não seria a mesma sem minha presença. Eu, contendo as lágrimas, em silêncio sufocado, penso: Meu Deus, como pode a minha insegurança ser tão desafiadora e poderosa? Ele, olhando-me fixamente, sem responder, me diz no mais fundo de meu pensamento: Como pode a segurança se envolver em águas tão inseguras…

E a noite invade a madrugada e avança para a manhã.

É o primeiro baile…

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Numa noite em Lisboa - Trindade

Os pés cansados. O rosto vívido... O entusiasmo regando e cultivando o espírito.  Purificando o pensamento. O caminhar. A descoberta de uma cidade com subidas, descidas... Ruas movimentadas e perigo nas esquinas. Passos registrando rotas e olhares fotografando a vida das ruas de tristeza e frio.

O desejo de ser mais do que eu era...

O Tejo me dizendo que a vida é um eterno ir e vir de histórias contadas com o passar de suas águas. O fado tentando me convencer do peso dessa caminhada, com a suavidade envolvendo seu sofrimento. Vozes que clamam em uma noite de Alfama. Luzes que cintilam no contar de outros tempos. Ruas e becos cansados, ofegantes. Intermináveis degraus... Um bonde voltando ao passado, no frio olhar da fumaça de um hálito quente.

Guitarras no despertar da noite.

Do alto, tão bela música olhando o silêncio do Tejo, que viaja a dormir. Lábios se unindo no calor das mãos que se entrelaçam. No olhar de pálpebras cerradas, o perfume e o sussurrar do pensamento.  O Tejo acolhendo o passar de suas águas. O fado suave no entregar dos sonhos. Um bonde conduzindo o passado ao futuro... Estava em uma noite, em Lisboa.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Birdman

Voar tornou-se símbolo de liberdade. Da busca do desprendimento das amarras da vida. Mas é na solidão de uma cela, morada de um condenado à prisão perpétua, que um filhote de pardal encontrará o cuidado necessário para crescer longe de seu ninho, longe de sua espécie, dando início a um período de paz interior, justamente quando o detento se envolve e se preocupa com o dia a dia dessa ave solitária. Isso dá sequência a uma história fantástica sobre o cuidado e a leveza, necessários para lidar com pássaros tão frágeis e delicados.  Sentimentos que contagiam o coração. Ali, onde o termo “liberdade” não produz os efeitos práticos, resta somente a libertação da alma. A aceitação das limitações da vida vivida em cativeiro. Justamente com pássaros. Estou falando do filme “Birdman of Alcatraz”.*

Não sabemos o que nos espera após a morte... Moldamos, ao longo da vida, o que pensamos ser o melhor e, baseados nos preceitos familiares e na convivência social, fazemos opções assumindo as consequências possibilitadas pelo exercício do livre arbítrio.
Imaginem se após a morte, fôssemos recebidos por um grupo incumbido de criar o filme de um momento de nossa vida, que nos tenha marcado profundamente! Essa lembrança seria o que levaríamos para a eternidade. Somente uma lembrança... Nesse momento, qual seria a lembrança de um acontecimento importante em sua trajetória nesse mundo, que seria o filme de sua vida para a eternidade? Estou falando do filme “Depois da vida”.**

Andando por uma rua deserta, à noite, observava a solidão dos edifícios, com suas poucas luzes acesas, imaginando os acontecimentos  simultâneos que contribuem para o que chamamos de viver. Alegrias, tristezas, realizações, dores... Tudo acontecendo simultaneamente e girando a roda que movimenta o mundo. Repentinamente, gritos atravessam a noite interrompendo a monotonia e o romantismo de uma chuvinha fina. Duas pessoas discutem com ferocidade. Embaixo de uma marquise, uma velha senhora de aproximadamente trinta e poucos anos, vociferando com palavrões e muita ira, exige que um rapaz saia de seu espaço argumentando que, à noite, aquele lugar é a sua casa. Ela exige que respeitem o seu lar de todas as noites. A briga é muito assustadora e a senhora sai vencedora. O invasor desiste. Sai em busca de outro lugar.

Estou falando, lamentavelmente, do filme real da vida. O espectador era eu mesmo. Descia a Rua Gávea no bairro Jardim América, em Belo Horizonte, após um dia de gravações. Quisera ser, naquela hora, o herói de um filme que salva os pássaros de dentro de sua morada eterna nesse mundo. Teria uma bela lembrança para o filme de minha vida...

*John Frankenheimer
**Hirokazu Kore-eda



terça-feira, 27 de março de 2018

Contrários

- Não são do bem nem do mal. São facções opostas.

Foi assim que meu filho respondeu à minha pergunta sobre os personagens de um joguinho eletrônico. Após dizer-lhe que a resposta era sábia, sem que ele desse qualquer  importância à minha opinião, seguimos jogando. Ou melhor, ele jogando e eu o observando. Sou péssimo nesse item.

Hoje, após abrir os olhos pela manhã, lembrei-me de nossa conversa. Depois de perambular por muitas hipóteses em busca de compreensão desse mundo estranho, onde amigos se digladiam e acreditam em opiniões (verdades)  apresentadas pela via escrita, justificando agressões nomeadas de “discussão saudável e necessária”, finalmente me veio a revelação que eu buscava. Já suspeitava, mas dita de forma metafórica, tendo como roteiro elipses da vida, fica tudo mais simples. Ditas com naturalidade, por uma criança, dando a devida importância: posicionamento.

Em minha mente desfilaram várias frases que presenciei, li ou ouvi ao longo da vida e que são atribuídas, nesse mar de insegurança e mediocridade filosófica que configura  a internet, a qualquer autor... Vladimir Horowitz me diz sobre a crítica na música: “Trata-se apenas de uma opinião. Opinião todos têm...”. Nietzsche proclama: "Eu jamais iria para a fogueira por uma opinião minha, afinal, não tenho certeza alguma. Porém, eu iria pelo direito de ter e mudar de opinião, quantas vezes eu quisesse”...


Em meio ao turbilhão que invade minha mente e meus olhos nesse lamaçal de opiniões, penso na realidade da vida. Às vezes dura. Não para mim. Acho que sou privilegiado por poder fazer música, escrever, sonhar... Mas para alguns que vagam pela cidade sem uma rota estabelecida. Que se reúnem, às vezes, para uma comemoração inusitada e, tal qual em um encontro marcado, festejam o nada.

Hoje, em frente à Biblioteca Pública, na Praça da Liberdade, enquanto caminhava com meu filho depois de visitar alguns museus, vi uma cena curiosa. De um lado um feliz encontro de personalidades da literatura, que nos ensinaram muito sobre a vida e o respeito à cidadania. Ali reunidos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campo pareciam, em conversa animada, discutir sobre a educação, a cultura, a poesia... Talvez sobre o jazz e a vida.

Do outro lado, alheios ao bate papo dos mestres, alguns moradores de rua cumpriam sua sina de nômades. Enquanto um dormia, outros preparavam, em uma cozinha improvisada com fornalha e utensílios gastos, algum tipo de alimento. A conversa era monossilábica. Pareceu-me que recebiam visitas, pois uma mulher chamava um dos presentes, dizendo que já estava na hora de irem embora.
Meu filho me perguntou se moravam lá... Olhei-o, pensei e disse:

- Hoje sim. Amanhã talvez em outro ponto da cidade. São errantes que sofrem com o desprezo de políticos que não compreendem que o bem estar das pessoas é a maior  obra da vida,  capaz de transformar culturas e melhorar o mundo. Ele olhou-me e disse de forma curiosa:

- Eles não têm casa?

Disse-lhe que ainda não. Mas que o mundo ia mudar e as pessoas de boa fé, (para mim, verdadeiros representantes do Brasil de Darci Ribeiro e tantos outros), viveriam bem e teriam paz em seus lares com suas famílias, independente de serem menos privilegiadas. Sem fome, com escola, saúde, emprego... Seguimos. Ele lamentando a distância do carro. Eu pensando com certo amargor: em breve teremos eleições. Será o momento de exercitarmos nossa cidadania e democracia escolhendo bem nossos representantes.

Olhei ainda para trás e vi uma cena bonita. Um dos moradores de rua apoiava seu braço nos ombros de Fernando Sabino e falava algo que eu não podia ouvir. Talvez celebrasse o “Encontro Marcado” com o respeito ao ser humano. Sorriam.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Lá fora...

"As coisas assim a gente não perde nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas".*

Saí lá fora e caminhei lentamente, a esmo. As damas da noite me assediando e me envolvendo. Olhei-me nos olhos e refleti, no espelho de  minha alma, o sentido de tudo em movimento. Na mistura de circunstâncias que é a vida, fui ingênuo, romântico... Talvez dramático também. 

Lentamente, evaporou de minha mente todas as tristezas,  males e frustrações que sombreavam meus dias. Tudo junto, me abandonando. O ar quente da noite, se tornando fresco. Incompreensão se convertendo em compreensão. Cegos enxergando e aleijados correndo felizes pelas ruas. Portas se abriram e, delas, os mortos ressurgiram. Com um grande salto comecei a voar. Enquanto isso, meus cabelos ondulavam sob uma leve brisa e as damas da noite, inquietas, me afagando o coração.

Abri os olhos e virei-me para a janela semiaberta. Um vento suave inundava a madrugada daquele quarto. Virei-me e aguardei novamente o sonho. Não veio...

*João Guimarães Rosa


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A paz...

Aviões de guerra bombardeavam a cidade.  Alguém me cedeu uma arma que mais parecia um brinquedo quebrado. Tentando descobrir uma forma de maneja-la, enquanto me protegia, eu corria de um lado para o outro, entrando em canais de esgoto e mantendo sob minha mira, todos que encontrava.  Parecia um filme, mas havia certa carga de realismo e um tipo de medo que me movia e ao mesmo tempo me fazia refém do acaso. Viver ou morrer lutando, sem me preocupar com a diferença entre ambos. Em alguns momentos tudo me parecia brincadeira. Daquelas da infância...

Acordei em uma cidade da Bolívia. Da janela eu via parte de uma linda praça em frente à Igreja de São Francisco. Na noite anterior, apesar do frio, estivera ali observando inúmeras pessoas enquanto pensava no Santo de Assis. Quanta bondade e coragem ao mudar a direção de sua existência! Imaginei como deve ser difícil se destacar entre as pessoas simples, tendo como escudo a simplicidade. Ser considerado santo somente por aqueles que se despem da vaidade e da soberba. Os Santos estão sempre muito distantes de nós mesmos, de nossos problemas... De nossa santidade.

Naquelas luzes brilhantes, com trilha sonora de um tráfego barulhento e confuso, me mantive alguns eternos minutos ocupado. Em minha mente, um desejo de compreensão da vida, dos motivos que nos conduzem nessa busca, quase estúpida, sem sabermos o que buscamos, trilhando caminhos que, às vezes, não conhecemos ou escolhemos.

Nas ruas confusas, camelôs preparando suas barracas e expondo seus produtos. Uma desordem organizada e desenvolvida, com o tempo, pela necessidade de espaço para alojar tantos trabalhadores. Mulheres com crianças às costas, empilhando suas mantas e tecidos, ponchos, gorros e instrumentos musicais. Um espetáculo roteirizado no dia a dia da rotina de pessoas simples e encenado nas ruas, em feiras a céu aberto, onde a vida acontece em uma sucessão histórica, alimentando o inconsciente coletivo e dando o sentido e o sustento para a  sobrevivência.

Uma imagem me chamou a atenção... Sentada em uma esquina, uma senhora solitária, mantinha suas mãos no rosto, em atitude de fadiga. Às vezes olhava para um lado e em seguida para o outro. Parecia mirar o mundo como espectadora. E a vida acontecendo. E as pessoas passando e as horas avançando...

Na vidraça, enquanto contemplava essa emanação da existência, eu me via refletido. Meu pensamento perfurando essa imagem que me separava do mundo lá fora. Minha ancestralidade me chamando para a vida em ebulição. Meus compromissos me apressando para um dia de trabalho. Meus sonhos, amores e desejos sobrevoando o meu pensamento. E a respiração arquejante me forçando o peito. E o desejo de saber o que aquela senhora pensava, onde vivia, como vivia, o que buscava... E o reflexo de minha imagem cedendo lugar para uma luz forte, ofuscante. Lá fora um  sol morno inundando o dia. E aviões de guerra bombardeando a cidade enquanto uma luz brilhante, com trilha sonora de um tráfego barulhento e confuso, me mantinha alguns eternos segundos ocupado... Estava em La Paz.