quinta-feira, 31 de março de 2022

Alegorias - No tempo em que as pessoas usavam máscaras

De repente a obscuridade tomou conta do mundo. Os valores representados por conceitos familiares, sociais, religiosos e políticos, se sentiram aprisionados na caverna da hipocrisia. As várias faces se mostrando e nós, com melindre, valorizando mais a matéria e o argumento, que a essência do conhecimento. Pontos, palavras, símbolos e inconsciente coletivo se materializando, criando grupos e dando asas a todo tipo de preconceito e posicionamento radical. 

Mesmo sob alerta o mundo, aos poucos, está se transformando em Babel. A língua dos homens se confundindo e criando falsas metáforas em benefício de ideias que corroborem seu pensamento. Nada como uma crise mundial que nos aprisione e nos coloque em uma “camisa de força”. Condição que somente nos permite recostar em duas paredes opostas. Um lado – outro lado. 

As máscaras confundindo o verdadeiro “Eu” de cada um e o caos da informação e do desconhecimento se transformando em bandeiras, atendendo à conveniência de cada indivíduo.

Talvez nossa era se torne conhecida, no futuro, como “No tempo em que as pessoas usavam máscara”.  Lá, talvez tenhamos transcendido os preconceitos e as diferenças. Os dias, quem sabe,  voltarão a ter sol e não luminosidade de telas embaçadas pelas digitais da falta de personalidade e coerência. As noites voltando e sendo iluminadas pela fogueira da paixão e do conhecimento regado e conduzido pelo sonho amparado pelo respeito. Quem sabe poderemos nos sentar em volta delas sem correntes e medo das sombras projetadas do fundo de nossa ignorância? E pela manhã acordar e olhar para as pessoas, a natureza e viver intensamente o que disse o poeta: “Vale a pena ter nascido pra sentir o vento na janela…”.*

Enquanto escrevo, observo o nascimento do dia, com um sol preguiçoso, lutando com uma longa noite escura que, sabemos, precisa descansar.

*Paulo Gabriel López Blanco



sábado, 15 de janeiro de 2022

Das cavernas

Cansado, com os olhos fixos em um celular, acompanho as atrocidades espalhadas pelo mundo mescladas com manifestos de felicidade, realizações, misticismo, sucesso e também muito rancor. Alguns casos são chamados de Fake News, embora eu queira que tudo seja verdadeiro e me mostre a face real de nossa raça nesses tempos que vivemos. Em vão… 

Discussões quilométricas mostrando a escuridão do caminho que teremos que  transpor para chegarmos a algum lugar. Sempre gostei de viajar sem reservas de hotel, preferencialmente de carro, parando em pequenos vilarejos, cidades e correndo o risco do acaso. Mas, hoje, cansado, olhando o mundo na tela de um celular, não consigo esquecer o poema de Hermann Hesse, “Neblina”*. Mas… Tudo bem. Como me disse um sábio mexicano: “Es lo que tenemos”. Esse é o meu mundo. 

 

Meus olhos ardem... Tento desligar tudo, inclusive eu mesmo. Relutante, lutando contra o medo de sair do mundo, decido caminhar um pouco pela rua. 

 

Meus olhos habituados à pequenez da tela de um celular, não conseguem mais olhar o dia, o sol, a luta dos últimos pingos de chuva se digladiando no ar. Tampouco uma senhora no sinal, que se aproxima dos veículos pedindo uma ajuda. O pulsar do coração dos dias pacientes, contados e marcados por minutos, no piscar de um semáforo. O açougueiro que, enquanto trabalha, flerta com a moça que caminha com seu cachorro na calçada, sem se preocupar com a faca extremamente afiada que tem em suas mãos. Os lixeiros cantando e correndo. Os carros parando para uma senhora atravessar lentamente a rua. Embaixo de uma marquise, um mendigo abraçado com seu cachorro, dividindo com ele os restos de uma comida esquecida em um latão de lixo, com a mesa posta sobre papelões. 

 

Difícil compreender tudo isso a “olho nu”. Só consigo enxergar na tela de um celular, de onde vejo as imagens que fotografo e depois compartilho com todos. Ali sim, posso manifestar meu desprezo a tudo que considero errado no mundo. “In loco” acho tudo desagradável. 

 

Nesse final de tarde o calor é insuportável. Me sufoca, me faz suar ao andar pela rua. Que coisa irritante. E agora?

 

Em uma pausa para refrescar, sentado em uma pequena praça, começo a olhar o movimento dos carros, as pessoas... Talvez volte a chover. Um pouco fatigado, percebo as sutis mudanças na claridade do dia. Nuvens obrigam a luz a se afastar e, pouco tempo depois, cedem espaço para um poderoso sol. Mas não dura muito. Gotinhas quase invisíveis, me expulsam daquela meditação. Uma criança ensaiando seus primeiros passos para a dança da vida, cai e chora. Uma babá aflita, desligando seu celular, corre ao seu encontro. Já consigo enxergar um pouquinho de vida vivendo. Mas é confuso. Não estou acostumado. Escuto o choro e me lembro daquelas pessoas que me dizem todos os dias que são felizes. Que sorriem em lindas fotos me mostrando os prazeres da vida. Elas me mostram as delícias da noite, restaurantes finos, amigos... Algumas até cantam e tocam, mesmo eu não podendo ouvi-las. E aqueles que tentaram me convencer de suas verdades? Em alguns eu acreditei. Onde estão?!

 

Começo a perceber que a cidade pulsa e tem sonoridade própria. Que o céu, às vezes nervoso, é lindo no crepúsculo, com sua mistura e contraste de cores, o arrebol... A criança, já ao meu lado, brinca comigo. A babá, uma vez mais, fala ao celular. O que fazer? Ironicamente, penso que só sei dar um “like” ou fotografar, mas aqui não adianta. Ela sorri e quer que eu interaja, brinque com ela. Cuidadoso, comigo mesmo, começo um diálogo gestual suave. Às vezes, olho para a babá temeroso de ser mal interpretado por ser um estranho falando com a criança. Ela, gente boníssima, não se preocupa. Segue, com agilidade, digitando ininterruptamente. A criança sorri e corre para longe de mim. Olha-me, cobre o rosto com as mãos, e retorna correndo e rindo. Descubro que o diálogo é muito simples. Divertido. Nesse corre corre atabalhoado, entremeado por palmas e risos fortes, num abrir e fechar dos olhos,  já é quase noite. Luzes vêm brincar também. Buzinas e motores entoando uma sinfonia e rogando para chegar ao “Gran finale”: suas casas. Bares celebrando mais um dia no tilintar de copos. É o mundo palpitando e seguindo a sua construção...

 

A babá, sem dizer nada, passa por mim e, tomando a criança no colo, segue sua jornada. Posso vê-la, à distância, com olhar de satisfação, atravessando a rua enquanto consulta seu celular. 

 

Um vento suave, mesmo misturado com os sons às vezes agressivos, às vezes cansados e aflitos, de carros agonizantes, me faz relaxar. Meu olfato percebe cheiro de fumaça, enquanto olho para as ruas. Levo a mão à testa e sinto uma pele oleosa. É o calor... Percebo que sinto sede e fome. Estou vivo. Não posso mais voltar àquele mundo de quatro paredes e tela luminosa. De lá, sei que não acreditaria em minhas histórias. Eu seria aquele que se desviou do caminho. 

 

Lembrei-me de Aristocles, o homem que alguns chamam de ombros largos: “Tente mover o mundo, mas comece movendo a si mesmo.” Sinto as pernas cansadas... Melhor estica-las e dar uma volta para ver mais a cidade. 

 

*Neblina – Hermann Hesse

 

Estranho é caminhar na densa névoa:
Solitária está cada planta ou pedra,
Nenhum arbusto enxerga o seu vizinho,
Cada um está só.

Cheio de amigos era, para mim, o mundo
Quando luminosa ‘inda era minha vida;
Agora, que a névoa caiu,
Ninguém mais é visível.

Não é deveras um sábio
Quem não conhece a escuridão
Que, suavemente, nos separa
De tudo inexorável.

Estranho é caminhar na densa névoa:
Viver é estar solitário
Entre gente que se ignora.
Todos estamos sós!

Tradução de Álvaro Cabral