O abismo das ilusões e a inteligência artificial

Cada período traz consigo seus riscos, medos e demandas. O monstro do momento é a chamada inteligência artificial (IA). Muito tem sido discutido e pouco avançado na compreensão do que poderá ser a atuação da IA no dia a dia dos autores e na vida dos profissionais de várias áreas. Fala-se muito sobre suas proezas nas artes, principalmente, valorizando suas possibilidades de imitação e coordenação de ideias. Esses temas têm levantado discussões acaloradas. Quase todas embasadas pelo medo do domínio dessa tecnologia. Já temos alguns profetas de plantão vendendo suas ideias com discursos apocalípticos e espalhando o medo e terror à nossa volta. Verdadeiros negociantes detentores de “bolas de cristal”. 

Seja na ordem econômica ou criativa, esse velho/novo conceito de IA tem atormentado várias áreas que se desdobram para entender e explicar formas de lidar com um fenômeno que por sua vastidão, magnetismo e falta de legislação, principalmente, tem ameaçado muito o ambiente artístico. O mais comum tem sido a preocupação com aqueles que temem “perder” o controle na criação e o respeito aos seus direitos, sendo substituídos ou usurpados pela IA. Embora tenhamos grandes perspectivas acerca dos benefícios, na área de saúde, por exemplo, o controle de ferramentas de criação artística carece de atenção especial, considerando que somos conduzidos por grandes interesses mercadológicos que criam e ditam tendências. Vivemos uma mudança de paradigma que nos assusta e nos atrai ao mesmo tempo. 

Pouco se fala naqueles que irão deter o poder dos instrumentos de viabilização da criação por essa via. Esses, na retaguarda, alimentam uma cadeia composta por empresas atuantes no mundo todo, que fomentam a inovação via inteligência artificial. Um verdadeiro condicionamento mental que desrespeita o criador e visa lucros e poder em curto ou médio prazo. Primeiro se cria, para depois condicionar os atores ao uso e, posteriormente, buscar os frutos que são os rendimentos originários da utilização dos mecanismos oferecidos. Uma busca de domínio sobre a produção. Várias vezes vimos isso ocorrer na indústria da música. Outras áreas, como o cinema, em todas as suas vertentes, sofrerão muito com os reflexos dessa nova possibilidade como forma de criação, se utilizada sem responsabilidade.  

Há anos seguindo essa trilha, não podemos esquecer dos benefícios que nos trouxeram as ferramentas como softwares e plugins de gravação, por exemplo. Nunca imaginaríamos a possibilidade de se criar ambientes sonoros para uma voz e instrumentos musicais em uma mixagem, utilizando efeitos como reverberes, delays e salas de determinados estúdios, igrejas e auditórios consagrados no mundo todo. 

Claro que para que chegássemos a esse ponto, houve uma negociação entre as fontes geradoras dessas possibilidades sonoras e os detentores dessa tecnologia, que entregam aos consumidores (estúdios, produtores e público em geral, mesmo que formado por interessados na criação diletante) essas ferramentas. Todos conhecem as origens de tal tecnologia que é remunerada pela utilização e disponibilização ao público por meio de compra ou assinatura.  

O que se passa na atualidade, infelizmente, é a normalização, banalização e confusão do que poderíamos chamar de verdadeiros profissionais, frente à concorrência desleal, com falsos produtores e criadores, incentivados pelos grandes interessados na IA, que compõem o que chamamos de big techs. Normalmente os beneficiados diretamente, são aqueles que disseminam a Inteligência Artificial como ferramenta criativa, não se preocupando com a ideia de preservação da criatividade humana e os direitos de remuneração por seu trabalho. Desconsiderando a possibilidade de uma negociação que favoreça aqueles que alimentaram e seguem alimentando um banco de informações de cunho musical, hoje usado para a mineração das informações utilizadas nos resultados das investidas da IA. Um artifício nefasto.  

De um lado a indústria com suas formas intrincadas de conduzir os grandes negócios e, de outro, a preocupação da gestão coletiva de direitos autorais e toda uma rede criativa que envolve a imprensa, literatura, vertentes jurídicas e a educação, com a utilização de elementos desenvolvidos ao longo de nossa história, pertencentes e consequentes de uma cadeia produtiva desenvolvida com envolvimento artístico, intelectual, estilístico e emocional. Se não consideramos a criação e envolvimento pessoal com a arte, uma questão sine qua non para o desenvolvimento humano e perpetuação de nossos valores fundamentais, estaremos fadados ao esquecimento e desumanização de nossa memória. Um verdadeiro investimento na robotização, que influenciará os aspectos humanísticos que regem nossa ética nas relações e perpetuação de nossa história.  

Resta-nos acreditar nas possibilidades jurídicas e na criação de leis para a regulamentação do uso dessa inovadora ferramenta. Que seja um instrumento que auxilie na inovação e evolução dos artistas e, acima de tudo, que estejamos atentos às possibilidades de utilização em nosso favor. Facilitando todo o processamento de dados e contribuindo para que todos os criadores, independentemente de sua área e projeção, possam receber pelo conteúdo gerado e utilizado em todas as formas de comunicação da música e artes em geral.  Nossa originalidade e exercício de nossos direitos, dependem de uma forte atuação política na instituição e legalização de mecanismos que preservem e perpetuem nossa identidade nacional. 

Parafraseando Nietzsche: não podemos olhar para o abismo de atrocidades e tampouco deixar que ele nos olhe. Precisamos sim, nos amparar com leis, bom senso e, com criatividade, partir para a luta. A uma só voz!!

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