domingo, 1 de novembro de 2020

Cultura – Um “trem” descarrilhado

Enquanto dados dos últimos anos apontam para a importância e crescimento das Indústrias Criativas e Culturais para a economia, gerando milhões de empregos diretos e indiretos em todo o mundo, principalmente no Brasil, assistimos ao espetáculo de um trem descarrilhado nos levando ao abismo cultural.

Se olharmos para a cadeia produtiva em Minas Gerais, veremos técnicos, estúdios, músicos, produtores e tantos outros representantes da área cultural com passagens pagas, em primeira classe, pelos órgãos político/culturais, embarcando, nos últimos anos, na “Barca do Inferno” com destino ao desprezo desses mesmos órgãos (in)competentes. Se recorrermos aos números e estudos comparativos, certificaremos uma queda de aproximadamente 60% nos valores operados nos últimos vinte anos no setor musical independente. Nesse ínterim assistimos à burocratização das leis de incentivo fiscal nas esferas municipal, estadual e, recentemente, o desmonte da lei federal, além de grande desestímulo da classe empresarial no apoio aos projetos locais.

 

Há alguns anos ouvimos dos políticos um discurso bem elaborado e recheado de promessas que são, posteriormente, esquecidas ou tratadas com incompetência. Sem criatividade e conhecimento das reais necessidades daqueles que vivem da arte, muitos projetos são descontinuados ou substituídos por planos populistas que não correspondem aos anseios da cena artística. 

 

Somos expostos a editais que transferem um grande fardo aos artistas, exigindo contrapartidas sociais que não se sustentam enquanto retorno para a população, por não haver estímulo e comprometimento dos órgãos públicos no apoio e investimento nas bases. É indispensável um trabalho visando a educação, informação e o desenvolvimento de uma verdadeira compreensão e percepção de nosso valor artístico. Que influencie a formação de público, para que haja uma maior interação de nosso povo com os artistas locais. 

 

Não há um tratamento diversificado, com olhar e estudos específicos, que considere as particularidades de cada região sob o ponto de vista das necessidades sociais, anseios da população e seu envolvimento com o processo de apreensão da cultura. Quando questionados sobre a realidade artística de Belo Horizonte ouvimos disparates, números etc., dignos de um tecnocrata. Mas... Estamos falando de Cultura. Criatividade. Inclusive na administração pública.

Com os “novos tempos”, somos praticamente obrigados a desempenhar todas as funções relativas à produção, com a ilusória máxima da atualidade de que o artista tem que ser seu próprio gestor, divulgador, produtor, agente, selo, editor... Fazendo com que todas as áreas envolvidas no processo sejam atropeladas, interrompendo o fluxo econômico e impedindo a divisão  de todos os méritos e proventos necessários para o mover da máquina. 

 

As consequências já são visíveis e não ajuda, em nada, usar o período de pandemia como bode expiatório. Esse processo já vem sendo desenvolvido há vários anos. O momento serve para reavaliarmos o quanto é tênue o exercício das profissões ligadas à arte de forma direta ou indireta e quão pouco suscetível é a administração de políticas culturais, incapaz de se adequar às necessidades dos envolvidos quando requerem mudanças.

 

Na área da música, especificamente, possuímos um talento natural para a criação e produção. Mas falta o cultivo e investimento nas áreas técnicas e comerciais (que também fazem parte da cadeia produtiva) que propiciem e facilitem a negociação de nossos produtos e serviços. Nossa produção fonográfica independente é intensa e já liderou muitas vezes o ranking de lançamentos anuais no país. Entretanto, nunca serviu como alavanca para a consolidação de um negócio rentável envolvendo vendas de produtos e shows que promovam nossos artistas, levando-os à autonomia e verdadeira independência. Sempre conviveu com a falta de políticas que invistam na arte e no povo, transformando-os, criando alternativas e gerando oportunidades. 

 

Por outro lado, indiretamente ou por imposição de projetos, muitas vezes a classe artística influenciou o menosprezo à produção local. Quase sempre funcionando como agenciadores de artistas de outros estados, favorecendo sua projeção local ao criar a estrutura e oferecer a eles todo o suporte para se projetarem em nosso meio, enquanto somos pisoteados pela falta de verdadeiros organizadores que acreditem em nossos valores e na possibilidade da formação de público e projeção artística. Começar do começo...

 

Mário de Andrade já chamava a atenção para o cuidado que devemos ter ao falar da cultura que conduz e une as sociedades, frente ao entretenimento que prevalece para o cultivo dos grandes negócios. Também necessário. 

 

Mais uma vez estamos próximos das eleições municipais. Momento importante para pensarmos o futuro da cultura e de todos os envolvidos na cadeia produtiva... Oxalá possamos expressar nossa arte, sobreviver dignamente dependendo somente daquilo que criamos e contribuir para que a cultura não pereça. Do contrário nossa cidade, nosso estado e país experimentarão a insignificância. 

 

Geraldo Vianna é compositor, violonista, arranjador e produtor musical

gvianna@geraldovianna.com

www.gvianna.com.br

 

 

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