sábado, 11 de março de 2017

Todas as manhãs do mundo

Música... Teremos que fechar os ouvidos para tudo que nos propõem. Teremos que abrir nosso coração para tudo que desconhecemos. Quem sabe nos encontremos na entrega, no voo maior da busca? Por que ser músico? Por que compor ou estudar um instrumento? Quando podemos considerar o que fazemos, como música verdadeira?
Muitos artistas já se perguntaram ou se depararam com esse questionamento, que definiria sua permanência, ou não, nesse difícil caminho.

Baseado no livro de Pascal Quignard - Tous les matines du monde -  “Todas as manhãs do mundo” (1991), de Alain Corneau, é um filme com um roteiro sutil, com uma aura bucólica e um romantismo comedido na aparência, embora intenso na essência. Caracterizando um conceito e estilo de amor trágico que, mesmo com a utilização de elipses, não transparece nenhuma preocupação com as entrelinhas. Permitindo que os personagens vivenciem a lentidão e a solidão do tempo interior.

Sainte-Colombe, um grande músico afastado da corte, vive com suas duas filhas em uma propriedade rural. Ambas aprenderam, com o pai, os conceitos estéticos da música e a arte de tocar  a Viola da gamba*. Vivendo de forma austera, passando várias horas em uma cabana construída para ser seu reduto, com o objetivo de se dedicar à música e à memória de sua esposa, ele se torna uma pessoa amarga, silenciosa e solitária. Fechado em si mesmo com seus fantasmas, levando ao extremo a sua condição solitária.

Marin Marais é um jovem  e talentoso estudante de música que busca em Monsieur Sainte-Colombe, os ensinamentos para se aprofundar no estudo da Viola da Gamba.
Hesitante, o mestre o aceita como aluno mas, pouco tempo depois, o expulsa de sua propriedade. Insensível aos soluços de sua filha, o mestre lhe diz: “O que é um instrumento? Não é a música ...Ouça os soluços que a pena arranca de minha filha... Estão mais perto da música que suas escalas! Vá-se daqui pra sempre. Você é um bom malabarista. Os pratos voam sobre sua cabeça e você não perde o equilíbrio. Mas é um pobre músico.”

Embora já estivesse envolvido com Madeleine,  uma das filhas de St. Colombe, Marais passa a viver na corte, rejeitando-a mesmo após saber de sua gravidez, construindo uma carreira de muito sucesso e se tornando um  importante compositor de sua época. A criança nasce morta, colocando Madeleine em grave estado de saúde. Fragilizada pelo abandono, manifestando seu desejo de ouvir a peça que Marin Marais havia composto para ela, por meio de sua irmã, o compositor lhe faz uma última visita. Após a execução de “La Rêveuse” e a partida de Marais, ela se suicida.

Como a música se alimenta da busca do conhecimento e aprofundamento no ser, mesmo com todo o sucesso na corte, Marais, aos poucos, sente que aquela semente lançada com hostilidade por seu mestre, criara raízes em seu pensamento e se tornara fértil em seus anseios de músico. Todas as noites ele retorna à propriedade de Sainte-Colombe e, escondido, escuta sua música. Talvez tocado pela culpa – Madeleine havia se suicidado depois de abandonada por ele – percebemos em sua atitude uma similaridade da percepção do sofrimento e da perda com o desejo de busca de novos caminhos para a música que professava. Tendo como essência a incompletude, o desejo de conhecimento do indizível...

A partir desse ponto, inicia-se uma nova relação entre mestre e discípulo, em um diálogo revelador, que aprofunda os conceitos filosóficos que doutrinam a vida do músico. O que é a música?  O que nos leva a ser músico e estudar um instrumento? Experiências de vida que dialogam com a subjetividade do ser e do fazer música. Aquilo que não existe, que nos vem em leves pinceladas do tempo em nossa forma de conduzir e ordenar os sons, o silêncio...

O filme, tecnicamente muito bem produzindo, conta com uma linda fotografia de Yves Angelo e belíssimas interpretações de Guillaume Depardieu (morto prematuramente aos 37 anos por pneumonia) como o jovem Marin Marais e Anne Brochet, como Madeleine. Como narrador VoiceOver e no papel de Marin Marais em sua fase adulta, encontramos um brilhante Gerard Depardieu que contracena magistralmente com  Jean-Pierre Marielle, como Sainte Colombe, um destaque à parte. Dois grandes atores conduzindo toda a trama, envolvidos pela beleza musical de temas compostos por Marin Marais e St. Colombe, entre outros, além de música original composta e interpretada impecavelmente por Jordi Savall, o que eleva e intensifica o realismo emocional da ação.

Para os músicos, talvez seja um pouco sofrível a imitação dos movimentos na interpretação dos temas, pela falta de sincronia e lógica dos movimentos melódicos, detalhe que merecia um estudo mais aprofundado. Mas, em hipótese alguma, esse deslize compromete um dos grandes filmes sobre música. Que nos eleva e nos enleva. Que nos conduz à reflexão máxima da vida, como dito em determinado momento do desenvolvimento da ação: "Todas as manhãs do mundo não retornam".

*Viola da gamba – instrumento de cordas tocado com arco e geralmente dotado de sete (viola francesa) ou seis cordas (viola inglesa).

Gênero: Drama
Direção: Alain Corneau
Roteiro: Alain Corneau, Pascal Quignard
Elenco: Anne Brochet, Carole Richert, Caroline Sihol, Gérard Depardieu, Guillaume Depardieu, Jean-Claude Dreyfus, Jean-Marie Poirier, Jean-Pierre Marielle, Michel Bouquet, Myriam Boyer, Nadège Teron, Philippe Duclos, Violaine Lacroix, Yves Gasc, Yves Gourvil, Yves Lambrecht
Produção: Jean-Louis Livi
Fotografia: Yves Angelo
https://youtu.be/pzJrIuSiQiQ

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A árvore dos tamancos

Crianças desempenhando funções de adultos e integradas, com suas famílias, à dura realidade do dia a dia. Vivendo e aceitando a dureza da vida pobre, com resignação e simplicidade. Inovando e renovando, todos os dias, a alegria e o poder criativo nas relações, no lazer e nas brincadeiras. Exercitando o amor em breves flertes respeitosos, com a beleza e pureza dos seres e da natureza. Mas sujeitos às injustiças sociais...

“A Árvore dos Tamancos” é considerado um dos grandes trabalhos do diretor Ermanno Olmi (Bérgamo – Itália - 1931). Seguindo os moldes do Neo Realismo Italiano, trabalhando com camponeses reais sem nenhuma experiência como atores, o diretor nos mostra a dura realidade de um agrupamento de famílias que vivem na região da Lombardía, no final do século XIX. Vivendo sob um regime de meeiros, onde a partilha de tudo que se colhe é feita em uma proporção de dois para um, cabendo aos trabalhadores a menor parte.

Individualmente, os personagens têm objetivos diversos na vida. O que os une é a luta pela subsistência, onde todos buscam uma saída para os seus problemas, dividindo os trabalhos, as angústias e se apegando à religiosidade e crença em Deus, como única saída para os seus infortúnios. Talvez um contrapeso para as limitações sociais impostas pelo sistema, buscando uma compensação divina para as desgraças e dissabores que os assolam na vida diária.

O tema central trata da história de um casal que, aconselhado pelo pároco, envia seu filho, criança notadamente inteligente, à escola. Isso o obriga a caminhar alguns quilômetros diários para estudar. Em uma dessas idas e vindas, o menino vê o seu calçado partido e, com muita dificuldade e lentidão consegue retornar à sua casa. Diante do acontecimento e da falta de recursos para comprar outro calçado, seu pai resolve cortar, às escondidas, uma árvore para, à noite, durante as orações da família, confeccionar um novo sapato para seu filho. As consequências dessa atitude, no desfecho do filme, nos conduzem à triste percepção de um mundo cruel, movido pelo poder e alheio às necessidades humanas.

Mesmo seguindo uma linha documental, o diretor conduz toda a trama com lirismo, esmero e abordagem poética. Sem evitar a crueza dos costumes e da condição dos camponeses pobres, ele nos leva à percepção da solidariedade humana em meio à pobreza. Da criatividade nas relações pessoais e do lazer em acordo com as condições sociais, onde todos cultivam, juntos, o bom humor e preservam o respeito e a amizade.

No final, a triste constatação de que nos tempos atuais vivemos em um mundo mais evoluído, porém com a persistência dos mesmo problemas: a dificuldade do acesso ao conhecimento e o domínio capitalista massificando e induzindo a maioria da população, com interesses alheios às necessidades do povo. Que em pleno século XXI ainda se permite a fome, a pobreza e a falta de educação básica. Que se promove a violência e se permite que os mecanismos tecnológicos, que poderiam tornar a vida de todos os seres melhor, pouco a pouco se convertem em grandes e comprometedores problemas que favorecerão, em curto prazo, o desemprego em nível mundial.
Premiado em vários países, “A árvore dos tamancos” obteve a Palma de ouro (melhor filme), no Festival de Cannes 1978, além do Prêmio Especial do Júri Ecumênico.

A ÁRVORE DOS TAMANCOS
(L´Albero Degli Zoccoli, Itália / França, 1978).
Direção, Roteiro e Fotografia: Ermanno Olmi.
Elenco: Luigi Ornaghi, Francesca Moriggi, Omar, Brignoli, Antonio Ferrari, Teresa Bresciani, Giuseppe Brignoli.
Drama / História.
186 minutos.
https://youtu.be/juvT6B_c0VA