sexta-feira, 24 de abril de 2020

Falsos profetas

Nesses tempos estranhos estamos muito expostos às tentativas de manipulação de vários poderes. Os instrumentos utilizados, muitas vezes são as religiões, às vezes por via política, guias espirituais, médiuns... Não acredito em representantes de religiões que se autodenominam iluminados, privilegiados pelo espírito e conhecedores do além. O tempo em vida, ou a morte, se encarregará de nos conduzir à verdade. Nosso coração saberá o que fazer. Nosso talento é viver. O caminho é solitário porque é na compreensão de nós mesmos, de nosso egocentrismo em defesa da imposição de ideias e de vitórias, que poderemos derrotar o nosso orgulho e vaidade. Contribuindo assim para que o mundo seja um pouco melhor, a partir de nós mesmos. Sem acontecimentos fantásticos e influências de outras dimensões. Como ser bom e pensar no bem, sem ser a partir de nossa verdadeira essência?

Grupos que coincidem em ideias que não sejam a unidade dos seres pela ética, boa vontade e a convivência em harmonia, sem impor verdades, mas questionando, discutindo e buscando as melhores soluções, com a compreensão da realidade do mundo e o respeito às pessoas e ideias, convivendo em meio às diferenças, me causam medo. Medo de uma doença do espírito, que atende somente ao afago do ego e da vaidade que consomem os ditos “grandes espíritos”.  Impor tendências em nome de possibilidades sobrenaturais é algo que repudio. A vida é aprendizado. Para todos. 

Esses falsos guias espirituais que nos rodeiam e tentam nos levar ao extermínio voluntário que alimenta sua ideologia, não conseguirão arrebanhar adeptos entre aqueles desprovidos de egoísmo e necessidade de suplantar seus semelhantes. No mundo material, lá fora, não sabemos quem nos governa. Nem com que objetivos. Somos peças de um jogo. Um jogo que de tempos em tempos se desorganiza e em seguida se reorganiza. Assim é a história da humanidade...

Gosto de olhar à noite, da janela, a cidade. Imagino quantas pessoas ocupam suas casas com suas famílias e com suas verdades e buscas. Imagino que o desconhecido seja um privilégio daqueles que conhecem as necessidades de todos os seres que povoam a terra. Dos que compartilham esse mundo com boa fé e desejo de melhores dias.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Música - Uma trajetória latino-americana

Brasil e Uruguai

A miscigenação de raças, com seus variados elementos culturais e artísticos, proveniente da Europa e da África, aliados à cultura indígena, são fatores muito importantes para a observação e estudo da cultura artística, principalmente musical, na América Latina. Cada país com sua particularidade, tem, em sua música regional, uma identidade própria que dá suporte para os avanços de novos expoentes. Que surgem com propostas avançadas e ideias inovadoras, tendo como base a essência de sua cultura, fruto de uma evolução natural.

Mesmo com todos os avanços dos últimos anos, no campo da tecnologia, quando se esperava um entendimento mundial e melhoria de vida para os cidadãos do mundo, somos forçados a admitir que muito se ganhou com o encurtamento das distâncias, pela facilidade de acesso e disponibilidade de informações, mas que também, em alguns aspectos, muito se perdeu.

Entre o Brasil e o Uruguai, por exemplo, houve um período de grande identificação, talvez nos primórdios e evolução paralela do nacionalismo musical, que contribuiu para certa interação artística entre compositores e instrumentistas. Principalmente aqueles que se dedicaram à composição, didática, exposição e execução do violão, e puderam participar de sua ascensão enquanto instrumento de concerto.

Nomes como Eduardo Fabini (1882 - 1950), que compôs “Tristes”, obra para piano e para violão, Alfonso Broqua (1876 – 1946) com a conhecida e difundida obra “Evocaciones Criollas”figuram entre os principais representantes do nacionalismo uruguaio e acenam para o que viria a ser considerado parte do repertório violonístico, expressivo para a evolução da literatura e intercâmbio do instrumento, entre os dois países. 

No Brasil, nesse período, precursores do nacionalismo como Brasílio Itiberê (1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892) e Alberto Nepomuceno (1864-1920), entre outros, preparam o caminho para o movimento modernista do início do século XX,  cujo lema era a liberdade de expressão, contra o academismo e o tradicionalismo, enfatizando o nacionalismo e valorizando essa corrente estética. Desse movimento surgiram importantes páginas da obra de autores brasileiros, compostas originalmente para o violão. Heitor Villa Lobos viria a compor uma das mais expressivas e importantes obras, passando a ser uma referência para o repertório violonístico mundial. 

Enquanto se desenvolvia a escola do violão brasileiro, de linguagem chamada popular, representada por importantes instrumentistas compositores, entre eles Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, (1915 – 1955) e João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco (1883 – 1947), com estilos antagônicos, o nacionalismo na música erudita, preparava o caminho do que viria a se tornar a música moderna com linguagem característica, respeitando a cultura de cada um desses países. Mesmo que, até certo ponto, sofrendo influências europeias. 

Entre 1937 e 1946, o violonista espanhol Andrés Segóvia se transfere para o Uruguai, em razão da guerra civil espanhola. Fixando sua residência em Montevideo, ele realiza muitos recitais pela América Latina, promovendo e dando visibilidade ao violão, em importantes salas e teatros voltados para a música de concerto. Durante sua permanência no Uruguai, Segóvia conhece um jovem músico chamado Abel Carlevaro, que nos anos seguintes seria seu discípulo. 

Nesse momento de grande efervescência musical, Guido Santórsola (1904 – 1994), que já frequentava o Uruguai desde 1931 como viola solista e, posteriormente, como regente da Orquestra Sinfônica do Sodre (OSSODRE), mantinha um forte elo entre a música dos dois países, presentes em suas composições. Nascido na Itália, ele viveu um longo período no Brasil e, a partir de 1940, transferiu-se para o Uruguai. Em sua obra podemos perceber momentos distintos, passando pela influência dos ritmos brasileiros e, em seguida, do nacionalismo musical Uruguaio. Radicado nesse país, ele viveria, ainda, um terceiro momento de sua linguagem de composição, onde prevalece o contraponto no desenvolvimento de obras como o Concerto para dois violões e Orquestra, por exemplo. Esse concerto foi, posteriormente, executado e gravado pelo Duo Abreu, formado pelos irmãos brasileiros, Sérgio e Eduardo Abreu. Gravação antológica de um duo reconhecido em todo o mundo. 

Nesse cenário, seguia o jovem compositor e concertista uruguaio, Abel Carlevaro (1916 - 2001). Nascido em Montevideo, nos anos de 1940 ele já fazia parte do ambiente musical latino-americano, conquistando a admiração dos mais importantes compositores que trafegavam na cena musical daquele tempo.  Importante pedagogo, Carlevaro desenvolveu um novo sistema para o estudo da técnica do violão e lecionou em importantes centros de ensino desse instrumento, tornando-se referência em todo o mundo. Tornaram-se célebres suas classes nos Seminários Internacionais de Violão de Porto Alegre, promovidos pelo Liceu Musical Palestrina. Por esses seminários passaram vários violonistas que muito contribuíram para a consolidação do instrumento no Brasil. Entre eles, o mineiro José Lucena, responsável pela criação do primeiro curso de violão em uma universidade pública federal.

Hoje podemos admitir que Abel Carlevaro foi presença marcante, tornando-se o maior incentivador do violão e criador de uma das escolas técnicas mais exploradas e difundidas no século passado.

Antes, porém, em 1931, migrara para o Brasil, seu compatriota Isaias Sávio (1900 – 1977). Em São Paulo, o violonista e compositor, criaria uma das mais importantes escolas da música erudita para violão. Inúmeros violonistas brasileiros, entre eles Antônio Carlos Barbosa Lima,  Antonio Pecci Filho, o Toquinho, (autor de várias canções populares em parceria com Vinícius de Moraes), e Marco Pereira, passaram por suas classes de violão, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Também foi seu aluno o importante pedagogo do violão erudito no Brasil, Henrique Pinto. Isaías Sávio é considerado um dos mais importantes promotores do estudo do violão no Brasil, com inúmeras edições em livros técnicos de sua autoria. Em 1963 naturalizou-se brasileiro.

Hoje, a escola brasileira do violão se guia por bases sólidas, tanto nas questões técnicas e musicais, como na busca de uma identidade plural, onde convivam, em harmonia, diversos estilos e gêneros. Nomes como Joaquim Francisco dos Santos, conhecido como Quincas Laranjeiras e Oswaldo Soares, entre outros, serão sempre lembrados como os responsáveis pela ascensão e aceitação do violão na alta sociedade, até então preconceituosa quanto à utilização do instrumento em concertos. Atualmente vivemos um “Violão Brasileiro” em constante ebulição. Cada região com suas particularidades e riquezas nativas, envolvidas por uma linguagem e roupagem pessoal que determina a marca do instrumentista.

A vertente popular, muito forte, iniciada por Garoto, Laurindo de Almeida, Luis Bonfá, João Pernambuco e Américo Jacomino, entre outros, teve sua continuidade com Baden Powell (1937 - 2000), e a magia do violão seresteiro de Dilermando Reis. Todos eles, por sua habilidade técnica e propostas inovadoras, responsáveis pelo feliz e necessário encontro com a didática de pedagogos uruguaios e brasileiros, dedicados e voltados para o estudo da técnica do violão. 

No presente, quando lançamos nosso olhar para o passado, de onde se percebe a história, somos impelidos a crer que a origem de tudo se dá na valorização do nacionalismo e na busca de identidade própria. Com abertura para o conhecimento alheio, para as propostas e investidas do mundo... Mas também para o confronto e experiência in loco e a pesquisa, onde a arte passa por filtros estéticos e culturais, embasada pelo que vivemos no dia a dia, absorvendo os elementos que utilizaremos para expressar nossas convicções artísticas. 

Podemos perceber os ecos e ventos dos precursores que nos levaram ao preparo técnico necessário para a execução de nossas ideias musicais. O mundo não tem mais fronteiras. A música ecoa em todos os cantos para aqueles que querem ouvi-la, experimenta-la, vive-la... 
E conhecê-la in loco, embora os encontros presenciais e a busca pelos concertos e espetáculos, tenham sido transferidos para o ambiente virtual. Os tempos nos indicarão os novos caminhos... 

Geraldo Vianna é compositor, violonista, arranjador e produtor musical.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Papai Noel

Na infância eu tinha muita pena do Papai Noel. Nas noites quentes de dezembro, eu ficava muito preocupado pensando em um velhinho tão bom, viajando a noite toda, com aquela roupa quente de lã e usando luvas grossas. Além do peso que carregava, claro. Pensava no calor insuportável que ele sentia. 

Um dia, resolvi que eu seria Papai Noel. Comprei roupa vermelha, barba comprida e branca, e tudo necessário para ser um perfeito “velhinho do bem” na noite de Natal. Meu filho, ainda novinho, me perguntava muito sobre ele... Disse-lhe que normalmente ele aparecia por volta da meia noite. Ele, muito ansioso, foi para a cama, mas, para minha surpresa e satisfação, se manteve em estado de alerta. O Papai Noel, envolvido com seu trabalho, foi surpreendido, na sala, próximo à árvore de Natal. 

Surpreso, eu ví brilhar os seus olhos de criança que olhavam atentamente o bom velhinho. Aos poucos, sua atitude de encanto, foi mudando e assumindo uma postura observadora. Com grande decepção, tocando meu braço, me perguntou se eu pensava que podia enganá-lo. Eu estava usando uma camisa vermelha, de mangas curtas, por causa do calor. Alegando que minha barba era muito branca e os pelos de meus braços negros, disse que nunca mais acreditaria em Papai Noel. Que já suspeitava que era mentira. 

Lembrei, na hora, que minha mãe, ou talvez minha avó, me disse certa vez que “Papai Noel e sonho bom, se esperamos, não aparecem”. Agora, chegando o Natal, me veio à memória esse episódio com meu filho. Acho que acredito em Papai Noel sim. Mas, hoje já mais vivido, espero que ele venha de camiseta e bermuda. Pode usar chinelos também. Que seja bem brasileiro e não sofra com uma tradição que não nos pertence. Mas que tanto ele quanto o sonho, não apareçam enquanto estivermos dormindo. Que ele venha rodeado de festas, alegrias, comemorações e que todos os povos possam recebê-lo. Que, mesmo convictos de suas limitações, possam ajudá-lo na simples tarefa de espalhar a esperança, o respeito e a solidariedade. Presentes também... Que o mundo seja simples e que ele seja um mensageiro de paz. Mas espero que não cometamos a injustiça de exigir que ele vista uma roupa inapropriada para cada país, nesse vasto mundo, que possa nos levar à dúvida sobre sua existência. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O riso de escárnio das hienas

Lembro-me da primeira vez em que vi, na porta de um teatro, um cartaz anunciando meu show. Aquela simples exposição me fez sentir que eu era um personagem na cena musical de Belo Horizonte. Jovem, imaturo e idealista, pensava na possibilidade da projeção de um trabalho tecido no sonho e no dia a dia dos estudos. Com o passar dos anos veio a consciência empresarial, necessária, de uma profissão chamada de “sagrada”, porém massacrada pelo conservadorismo piegas das mentes “cuidadosamente incultas” - ou explícitas - que conduzem a política no Brasil. Atualmente, projeção da maledicência e obscurantismo de governantes, onde os dogmas prevalecem à dignidade do bem viver e aos direitos dos cidadãos, equilibrados com os deveres. Uma falsa virtude muito apreciada nos tempos atuais, que disfarça e deixa transbordar as garras bestiais da Fera (ódio, rancor, preconceito, indiferença), mutilando e condenando a Bela (natureza, respeito, solidariedade, diferenças de credos... O Planeta).

Conversando com um amigo norte-americano, também compositor e instrumentista, eu falava da força econômica do cinema em seu país e da Indústria Cultural e Criativa brasileira que, hoje, é responsável por uma infinita rede de empregos diretos e indiretos, gerando renda e fazendo circular milhões de reais em todo o país*. Atraindo turistas de todo o mundo e cultivando uma identidade nacional marcada pela pluralidade, onde a miscigenação de raças, com suas crenças religiosas multifacetadas, lidera, com pioneirismo, a independência do aval de forças corporativas multinacionais, destrutivas, que rondam o quintal de nossa terra e de nossa arte brasileira.

Ele, se divertindo, me pergunta se estou comparando os outros países a hienas. Respondo com sinceridade que não. Os artistas, compositores e autores, no mundo todo, estão unidos em associações e alianças e nos apoiam a uma só voz. Imunes ao preconceito. Respeitando os direitos de todos e rendendo graças à qualidade de nossa música, cinema e arte em geral.
Entrando em seu jogo, também sorrio e acrescento: mas que há hienas, “las hay”. Estão infiltradas, atualmente, nos frustrantes cargos administrativos de setores governamentais da cultura no Brasil, por sua insignificância artística e criativa. Diante de um vasto mar, porém acorrentadas ao porto inseguro da ignorância que ofusca sua visão. O mais perturbador possível: posso ver o seu riso de escárnio.

*Dados da UNESCO em pesquisa realizada em 2015 em parceria com a Cisac (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores).

sábado, 17 de agosto de 2019

O vermelho da vida

Lá fora, um frio abaixo de zero... Por detrás de um vidro, com um olhar a sessenta por hora, observo um coração aquecido pela urgência dos dias. O pulsar da vida ritmado no caminhar que renasce todas as manhãs. Que nos obriga a recomeçar algo que não concluímos.

Passos tranquilos e elegantes, revelando a dignidade, resignação e solidão do ser.

Mãos que se esfregam no frio de um coração que pulsa. Que se mistura com as cores do dia, com os poderes que invadem a vida e o caminho... O sonho. Consumindo sua presença no vermelho que inunda o sangue do viver. Inundando e sangrando todo o seu ser. Sua vida. E o tempo passando...

Uma bela, mística e sonolenta manhã em La Paz...



sexta-feira, 5 de julho de 2019

Sobre a morte...

Todos aqueles que vivem em Belo Horizonte e já andaram pelas imediações da Avenida Silva Lobo, até a Via Expressa, já viram um rapaz, provavelmente jovem, sem pernas e muito sujo, utilizando como meio de transporte um Skate. Próximo a algum sinal de trânsito, ele segue na lida do dia a dia.

Sempre o observei. Inicialmente com pena, mas, com o tempo, com certa admiração.

Às vezes penso nas políticas públicas e sociais, nas pessoas sem moradia, sem alimento, sem educação, saúde… Na hipocrisia religiosa e pseudo-solidariedade implantada na mente das pessoas conduzidas pelo espelho da vaidade e do poder. Da incompreenção das necessidades básicas do ser humano, símbolo de um mundo fracassado. Da ilusão implantada em nossa mente, de vivermos tempos modernos, onde nos comunicamos com o mundo todo, a qualquer momento, favorecendo assim, nossos dias. Stop, please…

Para que me serve essa comunicação se o que predomina são asneiras nas redes sociais e nos órgãos de imprensa? Se o pecar por “Falso testemunho” (assim chamo o que denominam “Fake News”) inunda as atitudes de pessoas aparentemente de bem que, sem escrúpulos, assumem uma postura antiética frente à sociedade? Se a necessidade de suplantar a opinião alheia tornou-se mais importante que a essência do ser e o respeito à diversidade?

Refugiando-me na música e na literatura, principalmente, sempre consigo me preservar,  afastando esse ódio espalhado pelo sistema que mata, aos poucos, a nossa sensibilidade e percepção de um mundo que acontece “lá fora”. Trazendo para dentro de mim a responsabilidade da boa convivência com todos aqueles que me cercam e dividem comigo esse mundo. Aceitando as diferenças.

Matar sempre foi considerado algo repulsivo, inaceitável. Símbolo da perda da razão. “A vida, a Deus pertence” foi o que sempre ouví. Nos tempos atuais, talvez, a deus pertença. Se continuarmos matando, por ideologia, a liberdade de sentir, querer, ter opinião, crer, buscando nessa atitude um modo de preencher os dias, estaremos fadados à destruição de nosso maior bem: a capacidade de experimentar, observar e mudar nossas atitudes. Tendo como base a ética e o respeito a todos os seres vivos e à natureza.

Estamos trilhando um caminho inverso e dando suporte e veracidade às palavras atribuídas a Leonardo da Vinci, lidas em um velho livro biográfico e, aqui, traduzidas livremente: “A inteligência que foi dada ao homem, é um bem incomparável. E, no entanto, muitos homens nada mais podem ser chamados do que trânsito de alimento e produtores de esterco. Porque deles no mundo, nada mais que privadas cheias, permanece.”

O sinal fecha e, frente à ansiedade daqueles que projetam em sua pressa o ronco dos motores, nada mais resta àquele ser, sobre as rodas de um skate, que levantar os braços. Um companheiro de rua, maltrapilho, sujo e, aos nossos olhos, repugnante, entra em cena e lhe dá as mãos,  arrastando-o em formidável espetáculo digno de uma “largada” de fórmula 1.

Solidariedade lá fora…

“Um dia ainda entra em desuso matar gente”. (João Guimarães Rosa - Grande Sertão - Veredas)

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Insanidade

Próximo ao dia do compositor, comecei a formular e ponderar sobre o sentido da cultura em nossa vida. De forma ampla…

Preguiçoso e enfastiado que ando, com tanto lixo invadindo nossa casa e nossa vida, revisei o quadro cultural brasileiro. Que tristeza. Museus incendiados e condenados ao esquecimento, classe artística desprezada, setores culturais conduzidos sem criatividade por políticos de carreira, inabilitados, sentados à mesa de decisões de secretarias... Tudo isso cedendo lugar, na mentalidade do povo, por meio da mídia, a golpes de faca e bate bocas de pseudos conhecedores da problemática da vida. Do respeito…

Ironicamente, sorri e imaginei: como consegui dedicar toda minha vida ao estudo da música, composição, violão, ler livros, estudar cinema e canalizar tudo isso para o relacionamento com as pessoas e o entendimento da natureza humana?... Que loucura.

Aprofundar em temas como esse, dá muito trabalho e, quase sempre, nos leva ao conceito de que alguns questionamentos são loucura. Não têm resposta ou explicação. A verdade é que nossa raça tem muita facilidade para a adaptação. Nos acostumamos facilmente com a mediocridade e temos uma mente carente de soberania. A opinião ou o “espírito”, alheios à razão. Exceto quando atendendo às nossas necessidades e interesses próprios.

Modo insano de viver…

Assistindo aos políticos e ouvindo debates “engessados”, aguardo, ansioso, o momento do tema sorteado, com a palavra “Cultura”… Não tem?! Mas disseram que a base da civilização é a cultura! Não. Não tem mesmo. Ou não vi? Há outros temas mais importantes atualmente. É… O objetivo é outro. Argumentos que suplantem verdades ou inverdades adversárias.

A mãe, muito aflita e envergonhada, me chama e conta a realidade de seus dias. O marido, atropelado, em casa, sem emprego. Ela, desempregada. Ao seu lado o filho, um menino bonito, bem vestido e transparecendo desejo de brincar. Aproveitar seus dez anos. Ela diz que ele tem fome… Enquanto ela fala eu o observo. Por detrás de meus óculos escuros me permito reações que em situações normais eu travaria. Os olhos, às vezes, cedem à força da “água salgada” que as ondas do sentimento nos lança. A voz embarga. Retiro minha carteira e dou-lhe algum dinheiro.

Já me afastando, uma voz me diz que há alimento em sua merendeira. Voltamos. A cena é de uma criança entregando à outra algumas torradas e se despedindo. Acabara de pegar meu filho na escola.

Vida insana…

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Primeiro baile

Quis dizer-lhe algo sobre minha fragilidade. Sobre não saber para onde o mundo caminha. Sobre meus medos e inseguranças. Não consegui… O mundo é dirigido por nós mesmos em cadeias desordenadas, em direções variadas. Cada um buscando o que quer e dirigindo o andar dos dias como deseja.

Na madrugada, quando quase todos dormem, almas se redimem de suas dúvidas e pecados. A manhã é ansiosa. O dia tem que nascer.

Ele me olha e diz que sua vida não seria a mesma sem minha presença. Eu, contendo as lágrimas, em silêncio sufocado, penso: Meu Deus, como pode a minha insegurança ser tão desafiadora e poderosa? Ele, olhando-me fixamente, sem responder, me diz no mais fundo de meu pensamento: Como pode a segurança se envolver em águas tão inseguras…

E a noite invade a madrugada e avança para a manhã.

É o primeiro baile…

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Numa noite em Lisboa - Trindade

Os pés cansados. O rosto vívido... O entusiasmo regando e cultivando o espírito.  Purificando o pensamento. O caminhar. A descoberta de uma cidade com subidas, descidas... Ruas movimentadas e perigo nas esquinas. Passos registrando rotas e olhares fotografando a vida das ruas de tristeza e frio.

O desejo de ser mais do que eu era...

O Tejo me dizendo que a vida é um eterno ir e vir de histórias contadas com o passar de suas águas. O fado tentando me convencer do peso dessa caminhada, com a suavidade envolvendo seu sofrimento. Vozes que clamam em uma noite de Alfama. Luzes que cintilam no contar de outros tempos. Ruas e becos cansados, ofegantes. Intermináveis degraus... Um bonde voltando ao passado, no frio olhar da fumaça de um hálito quente.

Guitarras no despertar da noite.

Do alto, tão bela música olhando o silêncio do Tejo, que viaja a dormir. Lábios se unindo no calor das mãos que se entrelaçam. No olhar de pálpebras cerradas, o perfume e o sussurrar do pensamento.  O Tejo acolhendo o passar de suas águas. O fado suave no entregar dos sonhos. Um bonde conduzindo o passado ao futuro... Estava em uma noite, em Lisboa.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Birdman

Voar tornou-se símbolo de liberdade. Da busca do desprendimento das amarras da vida. Mas é na solidão de uma cela, morada de um condenado à prisão perpétua, que um filhote de pardal encontrará o cuidado necessário para crescer longe de seu ninho, longe de sua espécie, dando início a um período de paz interior, justamente quando o detento se envolve e se preocupa com o dia a dia dessa ave solitária. Isso dá sequência a uma história fantástica sobre o cuidado e a leveza, necessários para lidar com pássaros tão frágeis e delicados.  Sentimentos que contagiam o coração. Ali, onde o termo “liberdade” não produz os efeitos práticos, resta somente a libertação da alma. A aceitação das limitações da vida vivida em cativeiro. Justamente com pássaros. Estou falando do filme “Birdman of Alcatraz”.*

Não sabemos o que nos espera após a morte... Moldamos, ao longo da vida, o que pensamos ser o melhor e, baseados nos preceitos familiares e na convivência social, fazemos opções assumindo as consequências possibilitadas pelo exercício do livre arbítrio.
Imaginem se após a morte, fôssemos recebidos por um grupo incumbido de criar o filme de um momento de nossa vida, que nos tenha marcado profundamente! Essa lembrança seria o que levaríamos para a eternidade. Somente uma lembrança... Nesse momento, qual seria a lembrança de um acontecimento importante em sua trajetória nesse mundo, que seria o filme de sua vida para a eternidade? Estou falando do filme “Depois da vida”.**

Andando por uma rua deserta, à noite, observava a solidão dos edifícios, com suas poucas luzes acesas, imaginando os acontecimentos  simultâneos que contribuem para o que chamamos de viver. Alegrias, tristezas, realizações, dores... Tudo acontecendo simultaneamente e girando a roda que movimenta o mundo. Repentinamente, gritos atravessam a noite interrompendo a monotonia e o romantismo de uma chuvinha fina. Duas pessoas discutem com ferocidade. Embaixo de uma marquise, uma velha senhora de aproximadamente trinta e poucos anos, vociferando com palavrões e muita ira, exige que um rapaz saia de seu espaço argumentando que, à noite, aquele lugar é a sua casa. Ela exige que respeitem o seu lar de todas as noites. A briga é muito assustadora e a senhora sai vencedora. O invasor desiste. Sai em busca de outro lugar.

Estou falando, lamentavelmente, do filme real da vida. O espectador era eu mesmo. Descia a Rua Gávea no bairro Jardim América, em Belo Horizonte, após um dia de gravações. Quisera ser, naquela hora, o herói de um filme que salva os pássaros de dentro de sua morada eterna nesse mundo. Teria uma bela lembrança para o filme de minha vida...

*John Frankenheimer
**Hirokazu Kore-eda