terça-feira, 9 de março de 2021

Plano Geral - Entrevista com José Tavares de Barros

Profundo conhecedor da linguagem cinematográfica, o Professor José Tavares de Barros fala com sensibilidade, de forma espontânea, de sua visão sobre o cinema atual. Com sabedoria ele nos conduz à compreensão da importância da emoção e abordagem do mistério da vida e espiritualidade no cinema, para a realização de um bom filme.

GV – Com características próprias de estilo e circunstâncias de época, marcaram a história do cinema, movimentos como a Nouvelle Vague, o Neo-realismo italiano, o Cinema Novo… Existe, no cinema brasileiro atual, alguma característica particular, que vá marcar esta época?


JTB – Não entendo que existam atualmente tendências específicas no cinema brasileiro, como ocorreu com a Nouvelle Vague e com o próprio Cinema Novo. Desde a retomada, em 1990, há uma diversidade heterogênea de temáticas, enfoques e estilos, além de reincidente relação ambígua com o público. Há categorias evidentes, como a do cinema comercial – nem sempre com êxito – e um cinema independente com temáticas importantes e experimentação de linguagem, como os recentes “Céu de Suely” e “Cinema, aspirina e urubus”. Não percebo, na conjuntura atual, um modo brasileiro do fazer cinematográfico, como ocorre com os cinemas americano e francês. 


GV – Como o senhor vê os filmes lançados nos últimos anos, do ponto de vista de roteiro? 


JTB – Tenho tido oportunidade, nos últimos anos, de participar de comissões para outorga de fundos de produção, com base em roteiros. Do ponto de vista técnico, considero excelente o nível alcançado por algumas dessas propostas, como ocorreu no último concurso da Petrobrás, do qual participei. Claro que, no fim das contas, um bom roteiro depende também de uma boa idéia e de um argumento desenvolvido com criatividade. 


GV – Vários filmes chegam até nós tão bem “embalados” e bem acabados tecnicamente, que dificultam uma apreciação embasada somente em conceitos artísticos, tamanho o condicionamento através da mídia, que os precedem. Assistindo a um filme, o que o leva a concluir ser ele de boa qualidade, em todos os aspectos? 


JTB – A embalagem, realmente, é um setor amplificado por certos produtores capitalizados, com inegável influência sobre a receptividade do público. É o caso da filmagem de sucessos literários e mesmo da televisão (“A Grande Família”, p. ex.), com os chamados atores globais (“Se eu fosse você”). No meu entender, supostas as condições técnicas mínimas de imagem e som, caracterizam um bom filme uma superposição de fatores: história engajada do ponto de vista psicológico e social, desenvolvimento criativo da narrativa, personagens densos e coerentes, elaboração de metáforas, elipses e outras figuras de estilo. Numa palavra, identificação orgânica do cineasta-autor com seu relato cinematográfico. 


GV – Como o senhor vê a questão Qualidade/Orçamento na produção cinematográfica brasileira atual? 


JTB – O cinema brasileiro é quase totalmente subsidiado por órgãos governamentais, como sabemos. Nos cerca de 300 projetos que examinei recentemente, encontrei muitas distorções entre o orçamento proposto e as características de produção deste ou daquele filme. Há uma tendência dos produtores a supervalorizarem os orçamentos, considerando as dificuldades de captação dos recursos. Nesses casos, há enorme diversidade de critérios para determinação de valores para mão de obra, equipamentos, locações, etc.


GV – O cinema mineiro, que teve fortes representantes em seus primórdios, continua tendo estilo próprio e propostas arrojadas que o diferenciam do cinema nacional? 


JTB – O cinema mineiro nunca conseguiu impor-se nacionalmente como centro de produção. Nunca chegou a fazer escola ou marcar tendências, como a chanchada carioca, o ciclo da Vera Cruz e, muito mais importantes, o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Ocorreram em Minas ciclos de importância cultural, mas de mínima repercussão comercial, como a fase de Humberto Mauro e o núcleo de produção com recursos da Embrafilme, nos anos 1980. Com a tecnologia digital, está ocorrendo uma renovação importante da produção mineira, com destaque para o cinema experimental e de animação. Mas, como acontece em todo o Brasil, o acesso do público constitui ainda um problema sem solução aparente. 


GV – Emoção versus Técnica – O que o impressiona mais em um filme? 

JTB – No meu ponto de vista, antes de tudo, cinema é emoção. Emoção tem a ver com inspiração, criatividade, amor pelo cinema, identificação do espectador com o cineasta, abordagem do mistério da vida e da espiritualidade. Ingmar Bergman, com seus memoráveis primeiros planos, contribuiu para aprofundar o conhecimento do ser humano. Nesse sentido, um bom filme pode ser feito com mínimos recursos técnicos, como em certos filmes iranianos da atualidade. Na minha formação, o Neo-realismo italiano foi a escola que me ensinou a ver a realidade de outro modo, filtrada pelas imagens e pela montagem cinematográficas. 


GV – Cite quatro filmes que considera fundamentais na formação daqueles que desejam se engendrar no estudo do cinema. 


JTB – Difícil resumir mais de 100 anos em apenas 4 indicações. Indico os que mais me marcaram como espectador, talvez por motivos bem diferentes: NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (Stagecoach), de John Ford. LADRÕES DE BICICLETA (Ladri di biciclette), de Vittorio De Sica. OTTO E MEZZO, de Federico Fellini. VIDAS SECAS, de Nelson Pereira dos Santos. Quatro filme em P/B, as cores ficam por conta da nossa imaginação. 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Mulher

Eu poderia escrever muitas palavras bonitas, suaves e poéticas. Mas o medo da redundância me impede. As datas me confundem. Criam marcas, quase sempre sem associa-las às atitudes. Meu desejo de paz, respeito, delicadeza e realizações na vida é dirigido a todas as mulheres que conheço: minha mãe, irmã, sobrinhas, cunhadas, amigas... Todas as mulheres que passaram por minha vida e também para aquelas que não conheci. Que seguem o mesmo curso nessa trajetória e luta pela igualdade humana. Como uma senhora que vi, hoje, em uma rua de Belo Horizonte. Com sulcos profundos causados pelas rugas em seu rosto e olhar apático, afogado no alcoolismo, escondendo sua idade, sua história, suas vaidades e sonhos.

Que a vida seja melhor para todas as mulheres. Vamos comemorar, lutar e exigir direitos. A vida é bonita e pode ser florida!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Chick Corea - A partida...

Ontem assisti novamente ao documentário “Francisco Sánchez”. Nele, o Francisco, que na verdade conhecemos como Paco de Lucía, se encontra em um aeroporto, com Chick Corea. Depois, já no camarim, eles conversam (pouco) e combinam o encontro no palco. 

Fiquei pensando nessa coisa de aeroporto, camarim, palco, interpretação e performance. Todos são locais ou situações transitórias, onde somos levados a criar rotas, metas, estabelecer caminhos e, ao mesmo tempo, aceitar o inesperado.

Assim eu vejo a vida. Imprevisível. Principalmente a de músico. Todos vão tecendo e desenvolvendo o argumento de suas músicas e combinando novos encontros e sonhos que talvez não se concretizem. Tudo conduzido pela criatividade e poder de improvisar, ressignificar. A grande viagem, com reserva garantida ao nascer, mesmo não sabendo qual o destino, ou se há um destino, fazemos sozinhos. 

Ao saber da morte de Chick Corea, repassei alguns álbuns. Principalmente os que mais gosto: Akoustic Band e Three Quartets. Fiquei pensando no fenômeno que é o “ajuntar notas” e transformá-las em melodias, harmonias e ritmo. De onde vêm. Quantos anos de estudo, disciplina, organização e, para alguns, evolução pessoal. E a vida passando... 

Enquanto a vida passa eu penso no quanto foi bom poder ouvir e estudar Chick Corea, Bill Evans, Oscar Peterson, Luiz Eça... A partida é triste, mas as notas “ajuntadas” por eles ficam. E nos ensinam que há um lugar onde teremos que buscá-las para cultivar e regar nosso desejo de fazer música. Basta nos entregarmos para, talvez, encontrarmos essa trilha.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Primavera, Verão, Outono, Inverno... E Primavera

Há alguns anos, ao lado de Fernando Brant, comecei a visitar os videoclubes que começavam a fechar suas portas com a grande mudança do produto físico (DVD e Blue Ray) para as plataformas de streaming. Comprávamos todos os filmes raros.

Filmes para serem sentidos, experimentados...

As estações do ano formam um ciclo muito instigante na vida. Eu espero ansiosamente a primavera, minha preferida. Sofro um pouco no calor do verão, suporto bem o outono e, com esperança, passo pelo inverno. Em todas essas fases, vou sentido as mudanças, às vezes difíceis, que na verdade são etapas de crescimento, de adaptação e readaptação. Aprendemos a conviver, ao longo da vida, com os desejos não realizados, as dificuldades, amores frustrados e a busca do perdão junto com a capacidade de perdoar. Inclusive, a nós mesmos. Como as estações do ano, os períodos do dia e outros movimentos cíclicos da vida, vamos nos aprimorando na difícil arte de viver. Mas o mundo não para. Tudo segue mudando, nos conduzindo, nos testando e nos levando ao aprimoramento. Assim é o filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno... E Primavera”. Se tiverem a sorte de encontrar, não tenham dúvidas. Assistam. É um lindo filme dirigido por Kim Ki-duk, morto em dezembro de 2020, aos 59 anos, vítima de Covid-19.


quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Esperança

Muitos partiram. Pessoas próximas que amamos e pessoas que, talvez, jamais encontrássemos. Sabemos que cada ser tem um papel a cumprir nesse mundo e que a melhor forma de desempenha-lo continua sendo a solidariedade e o respeito a todos aqueles com quem cruzamos.  

A maior comemoração na chegada do novo ano tem de ser a fé na vida e nos seres de boa vontade que, juntos de nós, seguem por esse caminho...

 

Em Santa Efigênia (bairro de Belo Horizonte), um morador de rua, talvez chamado de louco, me assusta no sinal ao gritar com todas as forças: “Mas Ele disse para amarmos uns aos outros...”. Uma chuvinha fina me faz fechar o vidro do carro... Sinal verde. 

 

Sim, Ele disse. Paz em 2021!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Reflexões sobre o riso, o sorriso e a dor*

Após tanta massificação e influência de ideias herdadas do século passado e em atividade nos tempos atuais, não toleramos mais a velha postura chamada autenticidade. Talvez essa “qualidade” seja a maior mentira e ilusão do ser humano nos últimos tempos. Poderíamos dizer, ironicamente, que a autenticidade congela o sentimento, as reações espontâneas e tenta eleger regras para posicionamentos que justifiquem as atitudes - ou a falta delas. Alguns dizem que é melhor rir daquilo que fizemos e nos arrependemos. Ou: “é melhor rir do que chorar – viver a vida com leveza”. Sempre penso no motivo do riso em nossa vida. O choro seria o lado avesso do riso? Não sei. Às vezes acho os dois tão semelhantes... Um deles regado por lágrimas.

Historicamente há tanta polêmica sobre o riso, que isso forçou o sorriso a separar-se da graça. Antes, uma namorada em sinal de aceitação, após um flerte, sorria - ria sem ruído -. O bebê sorri. Demonstra compreensão dos desejos alheios de contentamento. A menina esboça um sorriso ao perceber os primeiros passos do amor. Isso a alegra e valoriza. A ironia, por outro lado, se manifesta no sorriso de desprezo ou decepção... Talvez até de surpresa... O que a faz se confundir.

O criminoso sorri com amargura nos olhos, diante de sua condenação. O perdedor, triste consigo mesmo, ri de sua fraqueza e derrota. Os pais esboçam um sorriso emoldurado pelo carinho diante das primeiras palavras do filho. O filho ri da falta de jeito dos pais frente à modernidade. 

Quase sempre, os homens riem muito e as mulheres sorriem mais. O sorriso pode ser portador do amor ou da dor, da leveza ou da preocupação. Lembro-me que alguém disse que “Todas as mulheres guardam algo de indestrutível e o trabalho dos homens é evitar que elas o percebam”. Quase todos riem da tentativa de evitar a percepção dessa qualidade que cria, nos homens, dúvidas e fraquezas traduzidas por machismo, complexo de superioridade, tentativas de subjugar ou menosprezar... O conflito e insegurança que isso traz, cria feridas e deixa sequelas que jamais nos abandonam. Samura Koichi diz: “Quem disse que o tempo cura todas as feridas? Seria melhor dizer que o tempo cura tudo, exceto as feridas”. Outro me diz: “Mas a história só é amarga para os que a querem doce...”. Outro ainda: “... um cão esperava seu dono todos os dias na estação. Um dia o dono morreu e o cão não soube. Continuou a esperá-lo a vida toda”. Meu coração, diante da tentativa de explicar o mundo por meio de palavras... Sorri. Com minhas limitações, eu somente consigo rir. 

Disso eu posso sorrir: após preparar, cuidadosamente um jantar (sou um gourmet bem razoável), meu filho, olhando-me com um sorriso, também cuidadoso, no rosto, me disse: Pai... Está ruim demais. Eu, claro, respeitei e pedi que ele fosse sempre sincero. Por ironia do destino, ele disse: Mas só a carne! 

Infelizmente, o prato principal era a carne... Sorri. 

Viajando recentemente, parei em um posto à beira da estrada. Pedi um pastel de carne ao atendente e, cansado e com fome, após a primeira mordida, percebi que não havia carne. O atendente, olhando-me fixamente, ao perceber meu sentimento de mau humor, com um sorriso amarelo estampado no rosto, aproximou-se e disse – Não tem carne? Fica tranquilo, chefe. Na segunda mordida “É batata!!”. Esperemos. Sorria muito e, se possível, evite chorar... 

*O texto foi baseado nos filmes “Sans soleil – La Jetée”, de Chris Marker. Recomendo.

domingo, 22 de novembro de 2020

O palco

Existe nele uma solidão amparada por várias pessoas que nos observam com olhares atentos, envolvidos por uma aura de prazer. Existe nele uma cumplicidade que transcende os limites da amizade e do querer que tudo dê certo. No palco e na plateia, todos buscam a realização plena.  Uma troca de energia... Ali, quando há um grande acerto, os olhares aprovadores são solidários e estampados em sorrisos ternos. Quando ocorrem pequenos deslizes, os mesmos olhares sorriem esperançosos, nos levando à crença de que é possível melhorar sempre. Que existem erros quando buscamos ser melhores. Nos momentos em que a energia da música extravasa o fazer, explodindo em grandes feitos musicais, uma onda de alegria e até mesmo de riso invade o palco e a plateia, levando-nos a uma catarse coletiva de purificação. Quando a emoção atinge seu extremo, em notas e acordes, e nos desperta da vida para o sonho, irrompe um turbilhão de aplausos. Aí, meus amigos, resta apenas crer que o sonho e a realidade se misturam numa celebração onde a vida “imita a arte”. Que é, nada mais, nada menos que: Vida!!

 

domingo, 1 de novembro de 2020

Cultura – Um “trem” descarrilhado

Enquanto dados dos últimos anos apontam para a importância e crescimento das Indústrias Criativas e Culturais para a economia, gerando milhões de empregos diretos e indiretos em todo o mundo, principalmente no Brasil, assistimos ao espetáculo de um trem descarrilhado nos levando ao abismo cultural.

Se olharmos para a cadeia produtiva em Minas Gerais, veremos técnicos, estúdios, músicos, produtores e tantos outros representantes da área cultural com passagens pagas, em primeira classe, pelos órgãos político/culturais, embarcando, nos últimos anos, na “Barca do Inferno” com destino ao desprezo desses mesmos órgãos (in)competentes. Se recorrermos aos números e estudos comparativos, certificaremos uma queda de aproximadamente 60% nos valores operados nos últimos vinte anos no setor musical independente. Nesse ínterim assistimos à burocratização das leis de incentivo fiscal nas esferas municipal, estadual e, recentemente, o desmonte da lei federal, além de grande desestímulo da classe empresarial no apoio aos projetos locais.

 

Há alguns anos ouvimos dos políticos um discurso bem elaborado e recheado de promessas que são, posteriormente, esquecidas ou tratadas com incompetência. Sem criatividade e conhecimento das reais necessidades daqueles que vivem da arte, muitos projetos são descontinuados ou substituídos por planos populistas que não correspondem aos anseios da cena artística. 

 

Somos expostos a editais que transferem um grande fardo aos artistas, exigindo contrapartidas sociais que não se sustentam enquanto retorno para a população, por não haver estímulo e comprometimento dos órgãos públicos no apoio e investimento nas bases. É indispensável um trabalho visando a educação, informação e o desenvolvimento de uma verdadeira compreensão e percepção de nosso valor artístico. Que influencie a formação de público, para que haja uma maior interação de nosso povo com os artistas locais. 

 

Não há um tratamento diversificado, com olhar e estudos específicos, que considere as particularidades de cada região sob o ponto de vista das necessidades sociais, anseios da população e seu envolvimento com o processo de apreensão da cultura. Quando questionados sobre a realidade artística de Belo Horizonte ouvimos disparates, números etc., dignos de um tecnocrata. Mas... Estamos falando de Cultura. Criatividade. Inclusive na administração pública.

Com os “novos tempos”, somos praticamente obrigados a desempenhar todas as funções relativas à produção, com a ilusória máxima da atualidade de que o artista tem que ser seu próprio gestor, divulgador, produtor, agente, selo, editor... Fazendo com que todas as áreas envolvidas no processo sejam atropeladas, interrompendo o fluxo econômico e impedindo a divisão  de todos os méritos e proventos necessários para o mover da máquina. 

 

As consequências já são visíveis e não ajuda, em nada, usar o período de pandemia como bode expiatório. Esse processo já vem sendo desenvolvido há vários anos. O momento serve para reavaliarmos o quanto é tênue o exercício das profissões ligadas à arte de forma direta ou indireta e quão pouco suscetível é a administração de políticas culturais, incapaz de se adequar às necessidades dos envolvidos quando requerem mudanças.

 

Na área da música, especificamente, possuímos um talento natural para a criação e produção. Mas falta o cultivo e investimento nas áreas técnicas e comerciais (que também fazem parte da cadeia produtiva) que propiciem e facilitem a negociação de nossos produtos e serviços. Nossa produção fonográfica independente é intensa e já liderou muitas vezes o ranking de lançamentos anuais no país. Entretanto, nunca serviu como alavanca para a consolidação de um negócio rentável envolvendo vendas de produtos e shows que promovam nossos artistas, levando-os à autonomia e verdadeira independência. Sempre conviveu com a falta de políticas que invistam na arte e no povo, transformando-os, criando alternativas e gerando oportunidades. 

 

Por outro lado, indiretamente ou por imposição de projetos, muitas vezes a classe artística influenciou o menosprezo à produção local. Quase sempre funcionando como agenciadores de artistas de outros estados, favorecendo sua projeção local ao criar a estrutura e oferecer a eles todo o suporte para se projetarem em nosso meio, enquanto somos pisoteados pela falta de verdadeiros organizadores que acreditem em nossos valores e na possibilidade da formação de público e projeção artística. Começar do começo...

 

Mário de Andrade já chamava a atenção para o cuidado que devemos ter ao falar da cultura que conduz e une as sociedades, frente ao entretenimento que prevalece para o cultivo dos grandes negócios. Também necessário. 

 

Mais uma vez estamos próximos das eleições municipais. Momento importante para pensarmos o futuro da cultura e de todos os envolvidos na cadeia produtiva... Oxalá possamos expressar nossa arte, sobreviver dignamente dependendo somente daquilo que criamos e contribuir para que a cultura não pereça. Do contrário nossa cidade, nosso estado e país experimentarão a insignificância. 

 

Geraldo Vianna é compositor, violonista, arranjador e produtor musical

gvianna@geraldovianna.com

www.gvianna.com.br

 

 

sábado, 29 de agosto de 2020

A difícil arte de festejar a vida...

 “Solidão é independência. Com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal, após tantos anos.” (Hermann Hesse)

Estamos preparados para a liberdade, viver respeitando tudo, todos e aceitando as exigências do ser livre? Talvez... Desde que nascemos somos, aos poucos, formatados de acordo com os padrões estabelecidos e considerados corretos. Nossos pais, dentro de suas possibilidades, nos ensinam aquilo em que acreditaram um dia. Assim vamos construindo o que consideramos correto. Desde criança ouço falar de alguns temas que fui, aos poucos, concordando ou discordando no mover da vida. Hoje meus conceitos são, às vezes, claros. Mas sigo como observador. Percebendo novos valores que surgem e se tornam parâmetro para a vida, enquanto outros não passam de sugestões de comportamento que se evaporam ou metamorfoseiam (que palavra), dando lugar a novos modelos. Abaixo, enumero alguns que considero pelo menos engraçados...

 

Dormir  - Sempre ouvi dizer que oito horas de sono, no mínimo, por noite, é o ideal. Melhor se for das dez da noite às seis da manhã. Duas da manhã às dez horas pode? Melhor não... “Deus ajuda a quem cedo madruga” e  dizem que o cérebro funciona melhor de manhãzinha... Alguns até se vangloriam pelo horário madrugador em que despertam. Aos que não madrugam, que se entendam com o diabo.

 

Alimentação -  Começar o dia com um café, pães, chá, sucos e, em seguida, fruta no meio da manhã. Almoço em horário controlado, lanche da tarde e jantar. A fome não interessa nesses casos. Quando criança observava a ceva de jacus. Uma beleza. Comida à vontade quando quisessem, até caírem em uma armadilha. Comiam sem ter fome. Na verdade um passatempo... 

 

Corpo e mente em equilíbrio - O sistema de regras nos garante também que é fundamental o cuidado com o corpo. O preparo físico influencia a mente. Praticar esporte é fundamental. Mesmo que seja antes do trabalho, às seis da manhã, por exemplo. Ou depois, por volta das sete da noite. O problema é que, para sair às seis da manhã para uma caminhada, temos que acordar as cinco. Trabalhando até as seis, sete horas da noite, surge outro problema: a caminhada ou ginástica de uma hora à noite, complica mais ainda, considerando que depois temos o banho, o jantar... E as oito horas de sono?

 

Independente disso, as regras dizem que o mais importante é manter o corpo em forma, complementando com musculação e, se possível, meditação. Lembro-me que em uma academia, o som de “bate-estaca” muito alto foi motivo de reclamação por um dos clientes. Ouvindo-o atentamente, o gerente diagnosticou com precisão, dizendo que, realmente, ele (cliente) estava estressado. Que deveria dobrar os dias de academia...

 

Modismos – Hoje as regras são rígidas: celular com câmera de alta resolução para as selfies e filmagens, além de uma boa internet... Faça-me o favor. Apple. Você é uma pessoa bem sucedida e inteligente. Não vá passar por esse vexame. O que os outros vão dizer? Não importa se sua situação econômica não é das melhores. Pague a “perder de vista”. Cuide das aparências.

 

Redes sociais - Discursos, nem pensar. Somente textos curtos e abreviados. O tempo urge. Não exija muito de seu leitor. Como você está em forma, exiba seus dotes físicos e costumes extravagantes como comidas sofisticadas, passeios, lazer... Vivemos a era da imagem. Não se intimide e jamais tema ser feliz. Mostre o quanto você aproveita a vida. Não omita o seu jeito bem sucedido de ser. Você pode ser um exemplo para muitas pessoas “acomodadas”. Valorize a sua beleza.

 

Não se preocupe com leitura. Afinal você tem acesso à cultura na internet. Há alguma dúvida? Nesses tempos, impossível.  A internet te conta tudo. Fala de política, sociologia, psicologia, filosofia, medicina... Que bom o “faça você mesmo”. Já dizem até que existe um “Doutor Sabe Tudo”. Seja bondoso com todos. Deixe seu LIKE.

 

Trabalhe feliz e contente, atendendo a todas as exigências de sua empresa. Não poupe esforços. O trabalho dignifica o homem. Ironia à parte, nunca ouvi dizer que à mulher também. Minha mãe sempre trabalhou cuidando da casa, comida, filhos... Uma luta. Bom, o sistema também tem falhas. Até um HD passa por isso. Como questiona-lo? A memória foi formatada.

 

Já terminando. O tempo é precioso e eu estou complicando esse texto por certa ansiedade. Muitos poderão dizer, a partir da leitura, que sou um reclamão ou anarquista. Talvez tenham razão. Mas me permitam. Gosto de comer somente quando sinto fome. De cochilar, acordar e não dormir mais, passar a noite em claro ouvindo música; de brincar quando as coisas sãos sérias, de assistir ao mesmo filme dez vezes, ler livros várias vezes e me dedicar à obra completa de um autor... Rir de minhas atitudes, sentimentos e ridiculariza-los. 

 

Isso, depois de todos os requisitos da cartilha concluídos e de ter à minha disposição algumas garrafas de cerveja ansiosas por aliviar seus fardos. Será que tem jeito para mim? 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Imprevisíveis encontros...

Em um dia ensolarado, enquanto nos acomodávamos em um restaurante para um almoço após uma longa manhã de reuniões, ele, subitamente, me disse: “- Por que não fazemos música juntos?” Olhei-o, pensei e, após uma eternidade de dois segundos, disse que ia procurar alguns temas que mantinha guardados. Mentira. Não havia nenhum tema composto. O espaço fictício que eles ocupavam, cedeu lugar à urgência de ter algo para enviar para ele. Teria dias de muito trabalho pela frente...

 

A noite era boa, quente. Como a maioria das noites no Rio de Janeiro. Em volta da mesa, pessoas que acabara de conhecer me causavam um bem-estar silencioso, desembaraçado e, mineiramente, observador. Brindes, risos e novas histórias invadindo o pensamento enquanto inquietas cervejas se despediam de sua origem, acariciadas por minhas mãos, saciando minha boca ansiosa de seu frescor. Me levando à compreensão da beleza do encontro e dos desígnios traçados pelas escolhas que fiz quando, aos sete anos de idade, adormeci para a realidade do dia a dia e despertei em um sonho de magia e de sons.

 

Saí daquele transe pela urgência da madrugada que já mostrava sua solidão nas ruas desertas. Também pelo silêncio daqueles que saborearam a noite e queriam voltar logo para suas casas.  Lembro-me de ouvir um “boa noite e até breve”, em coro. Seguiram... Eu, andando pelas ruas do Leblon, buscava um táxi e sonhava com “violas enluaradas” enquanto ouvia um mar ruidoso que me advertia pelo avançado da hora...

 

Agora, enquanto pedíamos o almoço, à minha frente, Paulo Sérgio Valle experimentava, com propriedade de enólogo, o vinho escolhido. Muita coisa havia mudado desde a noite no Leblon. Já o conhecia melhor e sentia o nascimento de uma amizade regada pela admiração e respeito por tudo que ele representa na música e pela pessoa de bem que é em todas as circunstâncias. Especial. Após o recente convite para compor música em parceria, eu imaginava as melodias que eu deveria criar rapidamente, para corroborar a “mentira” contada a poucos minutos...

 

Paulo Sérgio Valle completa, hoje, 80 anos. Exemplo de erudição, grande atleta e pessoa de franqueza confortadora. Sempre dizendo o que pensa com naturalidade, fortalecendo nossa confiança. Daquela longínqua noite no Leblon, ficou a lembrança da imprevisibilidade da vida. Amizade e confiança sendo cultivadas a partir de um encontro inusitado. Alimentado por longos e pausados debates sobre música, livros, vida... Temas que não acabam mais. Curiosamente uma das primeiras músicas que surgiram de nossa parceria, talvez exprima, com seu título, o meu sentimento sobre tudo o que a vida deseja nos dar e que nós nem sempre nos abrimos para receber.  “Imprevisível”* é um tema que nasceu do respiro do pensamento, como ave que se liberta de uma gaiola e voa livre, sem destino. Rumo ao que há de mais eterno na vida: dedicação, amizade, disposição para novas conquistas e a constante busca por tempos melhores. A compreensão do que somos pelo que fazemos, acreditamos e vivemos. 


Uma honra conhecê-lo. Vida longa, saúde e paz para o amigo!!!

 

*Imprevisível foi uma das primeiras músicas que fizemos juntos.